O colunista José Simão, da Folha de São Paulo, dizia, durante a semana, que a agente de trânsito que foi condenada a indenizar um magistrado carioca por ter afirmado, durante uma operação de trânsito em que o togado fora surpreendido conduzindo veículo automotor sem habilitação e em situação irregular (sem placas e documentos), que “ele poderia ser juiz, mas não era Deus”, não praticou desacato e sim blasfêmia.
Anedotas à parte, a troça do colunista possui um certo – e perigoso – fundo de verdade histórica.
Zafforoni nos lembra que o viés punitivo afeto ao processo penal moderno instaura-se, justamente, na imbricação entre árbitros e deuses.
Enquanto as primeiras fórmulas judiciarias pós-romanas de solução de controvérsias (justas e duelos) apoiavam-se na presença de um árbitro encarregado, única e tão somente, de prevenir e evitar o recurso à fraude por parte dos contentores, não sendo, portanto, o responsável pela decisão da controvérsia, entregue ao desígnio da divindade, ou seja, sairia vencedor aquele que contasse com o apoio da razão divina, as fórmulas processuais penais subsequentes implicam no sequestro do divino por parte do árbitro.
O árbitro abandona a função de observador equidistante, e Deus não mais decide duelos.
Dito na forma fundamentada que agrada aos juristas,
O reaparecimento do poder punitivo e o surgimento da Inquisição mudaram tudo. Até esse momento, nos processos entre as partes, a verdade se estabelecia pelos ordálios ou pelas provas de Deus. Os juízes anteriores à volta do Digesto e aos inquisidores eram, na realidade, árbitros desportivos, pois o ordálio mais frequente era o duelo. O que vencia era o que tinha razão, porque se invocava a Deus e este baixava magicamente invocado e se expressava no duelo, permitindo ganhar só àquele que tinha razão. Os juízes não julgavam e sim cuidavam para que não houvesse fraude. Quem decidia era Deus. Pode-se imaginar que esse juízes tinham uma absoluta tranquilidade de consciência. (ZAFFARONI, 2013, p. 26-27)
Estranhamente, essa suposta tranquilidade de consciência de que gozavam os árbitros de então, de certo modo deslocada de qualquer contexto histórico, faz lembrar um pouco o Dicionário do Diabo, no qual o processo judicial é justamente definido em função da tranquilidade que a obediência a um rito previamente traçado confere ao algoz, ao acusador, ao carrasco e ao juiz, isto é, se o processo foi respeitado não mais se questiona acerca dos motivos reais do exercício verticalizado do poder punitivo, conformado, como todos sabem, para punir feios, fedidos e favelados, mas imprestável e inidôneo se deflagrado em desfavor dos tradutores da verdade punitiva.
Ocorre que a obtenção da verdade punitiva não pode se dar de outra forma que não por intermédio da objetivação do humano e sua submissão a um circuito inquisitorial.
Assim, em decorrência da fusão do divino na pessoa do árbitro,
O imputado devia ser interrogado, e se não queria responder, a verdade lhe era extraída pela violência, pela tortura. Para isso haviam sequestrado Deus e o ordálio havia se tornado desnecessário, pois Deus já estava sempre do lado de quem exercia a violência. O poder tinha atado Deus, porque sempre fazia o bem.(ZAFFARONI, 2013, p. 27)
Em vista disso tudo, a agente de trânsito, ao negar-se a declarar a verdade,acabou sendo punida com pouca severidade.
Ora, como alguém ainda pode praticar uma infâmia tamanha, negando ao juiz o reconhecimento de sua incontestável divindade? Como não reconhecer a áurea divina de sua presença mesmo depois de um tímido “carteiraço”? Deus nem mesmo se apresentou como Deus, mas, humildemente, identificou-se como juiz!
Pagã!!!! Bruxa!!!! Fêmea (feminino, segundo a inquisição, é aquele que tem fé de menos – fé+minus)!
Quando informada sobre a identidade do ser que abordara, deveria ter se ajoelhado e exclamado: Deus, você existe mesmo!! Muito prazer….(lágrimas).