Os requisitos interposição recursal, especialmente aos Tribunais Superiores, são demasiadamente debatidos na praxe forense, eis que podem ser a porta de entrada para a reforma da decisão ou ainda, acaso insuficientemente demonstrados, fator impeditivo para prestação jurisdicional quanto ao assunto colacionado nas razões recursais.
O objeto de exposição do presente artigo, portanto, trata da análise específica acerca da existência do requisito do interesse recursal, por parte do Ministério Público, quando provido o Agravo em Execução Penal interposto pelo então reeducando.
O Ministério Público, segundo inteligência do art. 127 da Constituição Federal e do art. 1º da sua Lei Orgânica, é uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. De igual interesse para elucidação, firma o art. 129, inciso I da Carta Magna quanto à legitimidade privativa da instituição para a promoção da ação penal pública.
Em um sistema processual penal acusatório, como busca positivar o art. 3-A do Código de Processo Penal, oriundo da Lei 13.964/2019, é cristalina a necessidade de separação das partes, em especial a acusação e o magistrado, quanto ao interesse galgado pelas pares: convém ao Judiciário, na figura do magistrado, proceder pela devida aplicação da lei e presidir o bom andamento processual e à acusação perseguir o interesse em eventual condenação (entretanto, mantida a possibilidade pelo pedido de absolvição), bem manter a atuação institucional como fiscal da lei.
Ocorre, contudo, que a função acusatória do Ministério Público se esgota quando da prolação de sentença condenatória transitada em julgado, cabendo então ao Estado – na figura do Juiz da Execução Penal – exercer a função de executar a pena. O Ministério Público, quando partícipe dos autos da Execução, é mero consultor do Judiciário quanto à boa aplicação da Lei, não sendo, portanto, parte essencial com um interesse a ser perseguido.
Desta feita, em situação em que o reeducando interpõe Agravo, inconformado com a decisão do Juízo quanto à eventual pedido de seu interesse, é legítima parte com interesse na interposição do recurso.
Em relação ao interesse recursal, socorremo-nos às lições do Prof. Dr. Aury Lopes Jr. para elucidação descritiva[1]:
O recorrente deve ainda ter interesse, ou seja, deve existir um gravame gerado pela decisão impugnada. Inspirados e m GOLDSCHMIDT, entendemos que todo recurso supõe, como fundamento jurídico, a existência de um gravame (prejuízo) para a parte recorrente, isto é, uma diferença injustificada (na perspectiva de quem recorre, é claro), desfavorável para ela, entre sua pretensão (ou resistência, no caso do réu) e o que foi reconhecido e concedido na sentença impugnada.
Portanto, o interesse nasce de um gravame produzido pela decisão a ser recorrida, conforme entendimento doutrinário exposto.
Há evidente gravame em desfavor do recorrente/reeducando quando, em pleito específico da Execução Penal (levando em consideração o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, conforme decisão do Supremo na ADPF nº 347), é negado seu pedido e é então interposto Agravo de Execução. Sendo o agravo provido e reformada a decisão, de maneira a conceder o pedido requerido pelo então reeducando, existe interesse recursal por parte do Ministério Público para que seja interposto Recurso Especial e/ou Recurso Extraordinário?
Considerando a lição de Roxin[2] quanto ao fato da existência de um gravame ser “pressuposto geral material da interposição do recurso”, entendemos que, em situação excepcionalíssima de agravo em execução penal provido para a defesa, considerando que o Ministério Público não é parte no âmbito da execução, visto que exaurida sua função acusatória, mas unicamente custos legis, inexiste interesse recursal por parte da instituição por não existir gravame específico ao seu interesse, isto por óbvio, em situações em que a decisão a qual supostamente se recorreria encontra consonância no texto legal e no entendimento jurisprudencial.
De maneira coincidente ao argumento exposto, o Ministro Gilmar Mendes, quando indeferiu liminarmente a inicial da ADPF 768/MG[3], expôs que:
No que se refere à atuação em processos penais, ainda que os membros dessa instituição possam ocupar posições processuais distintas, entende-se que é dever do Parquet, mesmo nos casos em que atua como parte no processo, postular medidas que possam proteger os direitos fundamentais dos réus e condenados em geral.
Nessa linha, entende-se, por exemplo, que o Ministério Público deve postular a absolvição do acusado quando inexistirem provas suficientes à condenação. (…)
Ainda, segundo entendimento de Lenio Streck[4]:
Exigir um MP imparcial não é subestimar o que diz a processualística tradicional em suas definições conceituais clássicas; trata-se apenas de reivindicar um órgão que reconheça as circunstâncias favoráveis ao réu quando for o caso. E isso não apesar de suas atribuições funcionais constitucionalmente previstas, mas exatamente em razão delas. Processo, no Brasil, é processo constitucional. A principiologia constitucional impõe ao Ministério Público o dever de jamais agir por estratégia, sempre agir por princípio. Por isso o Estatuto de Roma teve a preocupação de obrigar a acusação de também investigar a favor do acusado. (…) (grifo nosso)
Há de se considerar, ainda, o fato do Ministério Público apresentar, eventualmente, contrarrazões ao agravo interposto pela defesa nos autos de Execução, no qual haveria hipótese em que a partir daquele momento, passaria então a se tratar de parte.
Contudo, as melhores lições da doutrina processual penal[5] não apontam nessa inovação de legitimidade:
Há alguma paz conceitual no sentido de que os recursos não estabelecem uma nova situação jurídica (ou relação jurídica, para os seguidores de Bülow), senão que constituem um desdobramento ou fase do próprio processo já existente. Não é nem poderia ser um novo processo ou um novum iudicium. É, como vimos, uma continuidade do exercício da pretensão acusatória ou da resistência defensiva, conforme o caso.
Considerando o entendimento do Prof. Dr. Aury Lopes Jr. quanto ao tema, inexistindo uma nova situação jurídica decorrente do processo, e considerando o posicionamento de que o Ministério Público não é parte dos autos da execução da pena, mas fiscal da lei, não haveria interesse recursal por ausência da sucumbência em eventual provimento do Agravo interposto pela defesa.
Não é possível, de acordo com o nosso entendimento, que o Ministério Público possa interpor recurso em face de decisão que tão somente foi favorável ao interesse do reeducando. Ainda que entendamos que a função de custos legis é concomitante com o de acusador na persecução penal, a situação, conforme emoldurado, é excepcionalíssima e diferenciada da comumente vivenciada, visto que, novamente, o Ministério Público não possui função ativa nos autos de Execução, nos termos do parágrafo único do art. 577 do Código de Processo Penal.
Há possibilidade de debate, por óbvio. É por esse motivo, inclusive, que concordamos com a reforma processual penal e com a devida edição de uma teoria própria do processo penal, nos termos já adotados pela doutrina especializada[6].
[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 16ª Edição. São Paulo : Saraiva Educação 2019, p. 1002.
[2] (Derecho Procesal Penal…, § 51, B, II, 2, p. 448) apud BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais, 2018, p. 137.
[3] Decisão disponível em: conjur.com.br/dl/mp-nao-apenas-orgao-acusatorio-defender.pdf
[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-19/senso-incomum-projeto-lei-evitar-parcialidade-producao-prova-penal
[5] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 16ª Edição. São Paulo : Saraiva Educação 2019, p. 997.
[6] LOPES JR. Aury; DA ROSA, Alexandre Morais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jul-28/limite-penal-quando-cinderela-processo-penal-ganha-novas-roupas