Ninguém desconhece que o agente que comete o crime de tortura previsto no art. 1º da Lei nº 9.455/1997, tem como consequência automática da condenação a “perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada”, por exegese do art. 1º, §5º do referido diploma normativo.
Da mesma forma, é cediço que os policiais militares, até o ano de 2017, quando eram condenados pela justiça comum pelo delito de tortura, eram sancionados com a perda do cargo, como efeito automático da condenação, de acordo com o previsto no art. 1º, §5º da Lei nº 9.455/1997, sem qualquer irregularidade ou aviltamento legal.
Outrossim, sabe-se que em 13 de outubro de 2017 foi sancionada pelo então Presidente da República Michel Temer a Lei nº 13.491/2017, que alterou sensivelmente o art. 9º do Código Penal Militar e ampliou significativamente a competência da Justiça Militar, passando a ser considerado crime militar não apenas aqueles previstos no próprio CPM, mas também em toda a legislação penal, desde que praticados por militares no exercício de suas funções ou em razão destas. É o caso da tortura quando praticada por policiais militares no exercício de suas funções, que passou a ser processada e julgada na justiça castrense.
Assentadas essas breves premissas, destaco que a questão que deve ser perfilhada neste artigo é a seguinte: após o advento da Lei nº 13.491/2017, pode o magistrado castrense aplicar ao policial militar condenado pelo delito de tortura a sanção de perda do cargo como efeito automático da condenação, amparado no art. 1º, §5º da Lei nº 9.455/1997?
A resposta, em meu entendimento, adianto, é negativa.
Isso porque – e este é o ponto nevrálgico da tese aqui defendida – em relação a perda do cargo em razão de crimes militares, processados e julgados na justiça castrense, existe previsão de procedimento específico (e contrário àquele do art. 1º, §5º da Lei nº 9.455/1997) no art. 125, §4º da Constituição Federal de 1.988, veja-se:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Grifamos)
Nessa acepção, a partir do momento (advento da Lei nº 13.491/2017) que o crime de tortura – praticado por policial militar no exercício da função ou em razão dela [art. 9º, II, “c”, CPM] – passou a ser considerado crime militar, a aplicação do art. 1º, §5º da Lei nº 9.455/1997, que estabelece a perda automática do cargo, passou a implicar em manifesta violação à disposição do art. 125, §4º da Constituição Federal, que prevê um procedimento específico junto ao Tribunal de Justiça após o trânsito em julgado de sentença que aplique pena unitária superior a dois anos, para realizar-se a perda da graduação dos praças (perda do cargo para policiais militares).
Sucede que alguns tribunais pátrios, v.g. e por todos o eg. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, vem chancelando[1] a aplicação da sanção de perda do cargo aos militares, como efeito automático da condenação pelo delito de tortura, aplicada, com as devidas vênias, equivocadamente pelo e. magistrado castrense ancorado no art. 1º, §5º da Lei nº 9.455/1997, em absoluta e insuplantável violação ao art. 125, §4º da Constituição Federal.
Veja-se que a teor da clara e literal redação do art. 125, §4º da Constituição Federal o magistrado singular castrense sequer possui competência para aplicar a sanção de perda do cargo aos militares condenados por crime militar, já que cabe “(…)ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”.
Com efeito, no Estado de Santa Catarina, o Tribunal competente para aplicar a perda da graduação dos praças, em procedimento próprio de Perda de Graduação de Praça (art. 125, §4º, parte final, da CF), é o próprio eg. TJSC, a teor do que dispõe o art. 90, §1º da Constituição Estadual do Estado de Santa Catarina de 1989, veja-se:
Art. 90. Os Conselhos de Justiça funcionarão como órgãos de Primeiro Grau da Justiça Militar, constituídos na forma da lei de organização judiciária, com competência para processar e julgar, nos crimes militares definidos em Lei, os militares estaduais.
§ 1º Como órgão de segundo grau funcionará o Tribunal de Justiça, cabendo-lhe decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Grifamos)
Em tempo, data máxima vênia, considerando a teratologia da aplicação automática da perda do cargo como sanção acessória da condenação pelo delito de tortura nesses tipos de casos, não constitui demasia rememorar a sempre abalizada lição do e. jurista Jacinto Nelson de Mirando Coutinho, para quem “O formalismo tem sentido e significado na perspectiva constitucional, pois a informalidade e o amorfismo são incompatíveis com a estrutura acusatória e o devido processo”[2].
Postas tais considerações é que se pode concluir que chancelar a aplicação automática da pena de perda do cargo, com fundamento no art. 1º, §5º da Lei nº 9.455/1997, ao policial militar condenado por tortura no exercício de suas funções após o advento da Lei nº 13.491/2017, considerando que há procedimento específico e previsto na Magna Carta para tanto, é vulnerar a redação expressa e mais do que clara do art. 125, §4º da Constituição Federal.
[1] Para fins de comprovar o alegado, elenca-se o seguinte recente julgado: TJ-SC – APR: 00023567420108240033 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 0002356-74.2010.8.24.0033, Relator: Luiz Cesar Schweitzer, Data de Julgamento: 11/02/2021, Quinta Câmara Criminal.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora, n. 1, 2001, p. 44.