No filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, em dado momento é dito para Amélie, protagonista do filme, a seguinte frase: “São tempos difíceis para os sonhadores”. Sim, são tempos difíceis para os sonhadores. Assim como são tempos difíceis para aqueles que lutam pelo exercício do Direito de Defesa, a fim de garantir o contraditório e a ampla defesa. Enfim, são tempos difíceis para aqueles que tentam equilibrar a balança da justiça.
Vivemos tempos de polarização, de ódio, de renúncia aos Direitos Fundamentais conquistados pela sociedade a duras penas. Vivemos tempos de criminalização da advocacia criminal. Existe, hoje, uma pulsão punitiva tão grande que os próprios advogados se tornam criminalizados.
Tradicionalmente, quando falamos em criminalização, pensamos na criação e na aplicação da lei penal. Ou seja, o processo com o qual estamos familiarizados. Contudo, a criminalização da advocacia criminal parte da lógica da criminalização cultural: um processo idealizado por uma mídia que retoricamente desidentifica o advogado com os demais membros da sociedade, promovendo uma edificação da figura do advogado como sendo o “outro”, aquele que se coloca ao lado do inimigo.
A partir desse pensamento, estando o advogado ao lado do dito inimigo, retratado como inimigo ele também é, na visão da mídia que pratica literalmente um desserviço para a sociedade. Demonizado e satanizado por essa grande mídia, por óbvio, o advogado também é tido como um transgressor.
Não se trata de um processo de criminalização no que diz respeito à criação de uma lei penal, mas sim uma criminalização simbólica e moral, cujo objetivo é desconstruir a figura do advogado, fragilizando o que representa o exercício de Defesa enquanto um pré-requisito para um Estado Democrático de Direito.
O oposto de um Estado Democrático de Direito é um Estado de Polícia. Como humanidade, já passamos por isso e não podemos retroceder, abrindo mão de conquistas históricas que custaram o sangue e o suor de muitos democratas.
Enquanto de um lado estão os agentes da lei, que são transformados em paladinos da ética e da moralidade, exercendo um poder persecutório e autoritário, poder este confundido com o conceito de justiça, como se só existisse justiça com punição, do outro lado existe um processo cruel de destruição e de criminalização da advocacia, criado a partir da conjugação de esforços midiáticos e judiciários.
Juízes, Promotores, Delegados e profissionais da grande mídia pensam que estão numa cruzada contra o crime organizado. E por isso são tão perigosos: porque de fato acreditam naquilo que fazem; porque pensam que, fazendo isso, estão a contribuir para um bem maior; porque acreditam que estão numa cruzada, enfrentando aquilo que atribuíram como sendo o mal.
Me preocupa, caros leitores, um processo penal que canoniza a verdade a ponto de suprimir direitos e garantias para atingi-la, podendo ultrapassar qualquer limite. Mas o que mais me causa espanto é um processo penal que desconsidera a verdade por completo, que exila a verdade. E desconsiderar a Defesa, que é tão importante quanto a acusação no que chamam de busca pela verdade real dos fatos, é sim exilar a verdade.
E a grande mídia possui um papel fundamental nisso, pois os ditos formadores de opinião colocam a opinião pública contra a advocacia criminal. A sociedade passa a enxergar o exercício do direito de Defesa como um obstáculo à justiça, a qual é retratada única e exclusivamente pelo poder punitivo do Estado.
É justamente isso que dá azo para verdadeiras bizarrices jurídicas, como o fato de Ministros da mais alta corte deste país chegarem ao ponto de fundamentar decisões afirmando que, por vezes, a culpa da morosidade de processos é da Defesa.
Esses são os discursos que a grande mídia endeusa e que, posteriormente, são replicados nas redes sociais pelo senso comum. Infelizmente, a opinião pública adotou essas premissas, dando base para que Juízes, Desembargadores, Ministros e demais autoridades passem a pensar que fazem parte de um seleto grupo de Deuses do Olimpo.
É preciso lembrar a todo instante que a opinião pública foi a responsável por inúmeras injustiças ao longo da história. Nas palavras de Evandro Lins e Silva, ao narrar uma disputa judicial de grande repercussão entre os dois maiores advogados franceses, Vicent GIaferri e Cesar Campinchi:
“Maître Campinchi vos dizia a toda hora que a opinião pública estava sentada entre vós, deliberando ao vosso lado. Sim. A opinião pública está entre vós. Expulsai-a, essa intrusa. É ela que ao pé da cruz gritava: ‘crucificai-o’. Ela, com um gesto de mão, imolava o gladiador agonizante na arena. É ela que aplaudia os autos da fé da Espanha, como ao suplício de Calas. É ela que desonrou a Revolução Francesa pelos massacres de setembro, quando a farândola ignóbil acompanhava a rainha ao pé do cadafalso. A opinião pública está entre vós. Expulsai-a, essa intrusa. Sim, a opinião pública, essa prostituta, é quem segura o juiz pela manga”.
Ao contrário do que preconiza a Constituição Federal, na prática, inexiste um processo penal fundado na ampla defesa, no contraditório, na dignidade da pessoa humana e na presunção de inocência. O que existe é um processo penal fundado no ódio, no conceito de inimigo e na lógica de extermínio.
Isso tudo, a partir de um discurso retórico utilizado pela Acusação, fica ainda mais gritante no plenário do Tribunal do Júri. Não são raras as vezes que o representante do Ministério Público ataca a advocacia, fomentando isso tudo no clássico: “somos nós contra eles”.
Em longa, conhecida e importante missiva (denominada como “o dever do advogado”), Rui Barbosa expõe para Evaristo de Morais o valor do direito de defesa:
“Poderão tê-lo visto com espanto os que ignoram a missão do advogado. Os que dizem haver crimes tão abomináveis, tão horrendos criminosos que não há, para eles, a mínima atenuante na aplicação da justiça, os que assim entendem, senhores, laboram em engano, confundindo, na sua generosa indignação, a justiça com a cólera e a vingança. Não percebem que, abrasados nessa paixão ardente e excitados da comiseração para com tantas vítimas, acabam por querer que se deixe consumar um crime social, de todos o mais perigoso: o sacrifício da lei. Não compreendo eu assim as obrigações da defesa. O legislador quis que, ao lado do réu, fosse quem fosse, houvesse sempre uma palavra leal e honrada, para conter, quanto ser possa, as comoções da multidão, as quais, tanto mais terríveis quanto generosas, ameaçam abafar a verdade.
A lei é calma, senhores: não tem jamais nem sequer os arrebatamentos da generosidade. Assentou ela que a verdade não será possível de achar, senão quando buscada juntamente pela acusação e pela defesa. Compreendeu que nem tudo está nas vítimas, e que também é mister deixar cair um olhar sobre o acusado; que à justiça e ao juiz toca o dever de interrogar o homem, sua natureza, seus desvarios, sua inteligência, seu estado moral. Ao advogado então disse: “Estarás à barra do Tribunal, lá estarás com a tua consciência”. […] O direito da defesa, a liberdade da defesa, confiou-os à honra profissional do advogado, conciliando assim os legítimos direitos da sociedade com os direitos não menos invioláveis do acusado”.
O lugar do Advogado de Defesa não é no banco dos Réus. Mas sim ao lado dele. Pois se eu tiver que ser que nem aquele Cireneu, que ajudou Cristo a levar a cruz até o Calvário, assim eu serei. Sempre ao lado do Réu. Até o último minuto.
Por isso, caros leitores, é que volto a afirmar: são tempos difíceis para os sonhadores. Muito difíceis. Mas é preciso lutar, ainda que não haja esperança. Porque a esperança não faz parte da luta.