A Lei 13.964/19 trouxe significativas mudanças na legislação penal e processual penal brasileira. Dentre as mais importantes alterações, destaca-se a possiblidade de realização de Acordo de não Persecução Penal (ANPP), entre Ministério Público e investigado, nas infrações penais cometidas sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, cumprida uma série de outros requisitos objetivos e subjetivos, previstos no artigo 28-A do chamado Pacote Anticrime.
Entre as demais condições impostas no dispositivo legal em comento, uma em especial chamou bastante atenção e vem causando bastante polêmica, que é a necessidade de o investigado confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal para que seja possível a concretização do Acordo de não Persecução Penal.
Que a exigência de uma confissão para que o aludido negócio jurídico seja realizado é bizarra e desnecessária, creio não haver grandes dúvidas, inclusive por grande parte do Ministério Público. Em que pese o argumento de que a confissão seria uma garantia de que o investigado irá cumprir o acordado na negociação, uma espécie de carta na manga, entendo que tal justificativa não se mostra nada convincente. Com a devida vênia, a simples ciência de que se o ANPP não for respeitado uma denúncia será oferecida e este investigado responderá a um processo criminal me parece mais do que suficiente para garantir/estimular o cumprimento das condições impostas no acordo.
Deixando de lado, ao menos por ora, a discussão acerca da necessidade da confissão, questiona-se: A exigência da confissão para a realização do ANPP viola o direito à não autoincriminação?
Em uma interpretação sistemática e histórica do direito à não autoincriminação, entendo que sim. De início, importante esclarecer que o princípio nemo tenetur se detegere, expressão latina que representa o direito à não autoincriminação, corresponde a uma das mais importantes garantias fundamentais do acusado contra os excessos cometidos pelo Estado na persecução penal, constituindo essencial instrumento de limitação do jus puniendi.[1]
Necessário consignar, ainda, que tal postulado fundamental não se limita tão somente ao direito de não se autoincriminar propriamente dito, mas possui diversas outras manifestações, é princípio de muito maior amplitude. Nesse sentido, convém citar a lição de Luiz Flávio Gomes ao estabelecer o conteúdo do princípio nemo tenetur se detegere e suas diferentes dimensões: a) direito ao silêncio, b) direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal, c) direito de não declarar contra si mesmo, d) direito de não confessar, e) direito de declarar o inverídico, sem prejudicar terceiros, f) direito de não apresentar provas que prejudiquem sua situação jurídica, g) direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa, h) direito de não ceder seu corpo (total ou parcialmente) para a produção de prova incriminatória.[2]
Não é nada por acaso, também, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao assegurar o direito à não autoincriminação em seu artigo 8º, 2, g, traz expressamente em sua redação o direito de não confessar, nos dizeres “direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. Não custa lembrar que o referido Tratado de Direitos Humanos, aprovada em 22 de novembro de 1969 pelo Pacto de São José da Costa Rica, foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, pelo Decreto 678, adquirindo status de norma constitucional.
É nítido, portanto, que o princípio nemo tenetur se detegere tutela muito mais do que um direito de não produzir provas contra si mesmo, mas contempla, de igual modo, o direito de não confessar-se culpado.
Prudente, ainda, alguns apontamentos históricos sobre a origem da garantia contra a não autoincriminação. Em meus profundos estudos sobre o princípio nemo tenetur se detegere constatei que, apesar de não se saber ao certo quando originou-se o direito à não autoincriminação, o mais provável é que tenha surgido durante a Idade Média, como limitação ao dever de confessar imposto pela Igreja Católica.[3]
Na verdade, desde a Antiguidade (Egito), passando também pelas civilizações clássicas (Grécia e Roma), o instituto da confissão já se mostrava bastante problemático, justificando o emprego de torturas para a obtenção da referida prova, que já detinha grande valor probatório no Processo Penal. Com a Inquisição da Idade Média, este processo acentuou-se ainda mais, de modo que o emprego da tortura se tornou cada vez mais frequente, na busca da prova Rainha de um Sistema Processual Penal Inquisitivo, a confissão.
Registra Pietro Verri, ainda, que além da tortura, o magistrado empregava meios insidiosos para se obter a confissão. Em determinado caso, por exemplo, o juiz conduziu a acusada a seu quarto, tendo relações sexuais com a mesma com a promessa de que a libertaria se esta confessasse um homicídio. A acusada, ao confessar o delito, foi morta por decapitação. [4]
Foi somente com o iluminismo que tal cenário mudou. Os pensadores iluministas acreditavam que qualquer declaração autoincriminatória era antinatural, e que os meios empregados para a obtenção da confissão – tortura e outros meios insidiosos – eram imorais.[5] Filangieri, em sua expressiva obra La scienza della legislazione, sustenta que foi nessa época que se concretizou a ideia de que o acusado não tem o dever de confessar o crime que lhe é imputado, assim como a autoridade judiciária não tem o direito de exigir-lhe a confissão.[6]
Meu epílogo é que o direito à não autoincriminação nasce justamente em decorrência de toda uma problemática histórica entorno da confissão no Processo Penal; nasce como oposição ao instituto do juramento e limitação ao dever antinatural de confessar imposto pela Igreja Católica na Idade Média; nasce como essencial instrumento de limitação do poder do Estado e, finalmente, nasce como garantia do acusado para evitar torturas e outros meios insidiosos na persecução penal, prevista expressamente em nosso ordenamento jurídico.
A exigência de uma confissão no Processo Penal, por mais que atrelada a um acordo de vontade entre as partes e represente inicialmente tão somente condição para realização do ANPP, é uma adaga no peito do direito à não autoincriminação, atinge núcleo essencial do princípio nemo tenetur se detegere, é inconstitucional, é retrocesso, é humilhação, é ranço inquisitório, e não está há tantos passos da tortura.
[1] CECCATO JÚNIOR, José Antônio. O direito à não autoincriminação no caso do etilômetro: Um estudo comparado sobre o princípio “nemo tenetur se detegere”. São Paulo: Tirant lo Blanch. 2019, p. 109.
[2] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da não autoincriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Disponível em https://www.lfg.com.br/, 26 de janeiro, 2010.
[3] HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago, 1997, p. 185.
[4] VERRI, Pietro. Osservazioni sulla tortura. Milano: RCS, 1998, p. 108.
[5] GREVI, Vittorio. Nemo tenetur se detegere. Milano: Giuffrè, 1972, p. 9.
[6] FILANGIERI, Gaetano. La scienza della legislazione, a cura di E. Palombi. Napoli: Grimaldi & C, 2003, p. 141.