“O advogado exerce função social, pois ele atende a uma exigência da sociedade. Basta que se considere o seguinte: sem liberdade, não há advocacia. Sem a intervenção do advogado, não há justiça, sem justiça não há ordenamento jurídico e sem este não há condições de vida para a pessoa humana. Logo, a atuação do advogado é condição imprescindível para que funcione a justiça. Não resta, pois, a menor dúvida de que o advogado exerce função social.” Ruy de Azevedo Sodré, “A ética profissional e o estatuto do advogado”.
Independentemente da posição teórica que se assuma, é forçoso concluir que o fenômeno jurídico é fortemente influenciado pela historicidade, que, não surpreendentemente, é igualmente característica da conditio humana[1]. Destarte, qualquer abordagem que ignore “as condições históricas da forma jurídica” [2], como diria Pachukanis, acabará por flutuar no superficial.
Essas considerações que, inicialmente, poderiam ser vistas como triviais, na verdade apontam para elucidações férteis. Uma delas é lembrar-nos de que todos os direitos não estiverem “sempre aí”, não são entes naturais, existentes ad aeternum. Em verdade, ao contrário, eles foram desenvolvidos após lutas sociais que, a bem da verdade, forçaram a sua criação.
Isso é ainda mais relevante no Brasil, que, após intensas e contínuas lutas sociais, cristalizadas em certa medida na Constituição Cidadã de 1988, rompe com a forma autoritária de se governar e relacionar-se com os cidadãos, criando um novo paradigma jurídico fundado no Estado Democrático de Direito.
Para o sustentáculo desse edifício jurídico, o Direito confere papéis[3] a agentes que são imbuídos do mister de defender a ordem jurídica. Exemplo disso é o advogado, que, nos ditames do artigo 133 da carta magna, é considerado “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Consequência disso tudo é que as violações das prerrogativas conferidas ao advogado, enquanto defensor da ordem jurídica, dos direitos e das garantias fundamentais conferidas a todo e qualquer cidadão, é, em última análise, uma violação do próprio sistema político centrado no princípio democrático.
E, desafortunadamente, não são raros os casos em que o advogado é vislumbrado como um óbice, um empecilho, sofrendo uma série de violações das suas prerrogativas. Exemplo disso não faltam.
Vislumbre-se o noticiário e encontrar-se-los-á. Um advogado, verbi gratia, enquanto exercia o seu munus público, foi processualmente constrangido a participar de uma audiência, não obstante estivesse internado em hospital. Teve, portanto, de realizá-la diretamente da cama de um hospital [4].
Noutro caso, semelhante ao supracitado, o advogado, hospitalizado por conta de uma cirurgia, teve seu pedido de adiamento da audiência adiado e, somente com a intervenção da OAB de Santa Catarina, teve seu pleito deferido [5].
Ainda em Santa Catarina, noutro caso de violação das prerrogativas, o procurador teve sua conversa privada com seu cliente indevidamente gravada pelo Juiz. Inclusive, tal conversa foi juntada aos autos, tornando-se de acesso público (tanto é assim que foi divulgada na internet).
No Distrito Federal, em outubro de 2020, outro advogado sofreu violação de suas prerrogativas. Neste caso, foi preso o advogado, enquanto no exercício da função, sob a justificativa de que “não calou a boca”. Não fosse suficiente, algemaram suas mãos e pernas [6].
Poder-se-ia seguir indefinidamente elencando casos semelhantes. Eles servem, contudo, para demonstrar um modus operandi que não se coaduna com a ordem jurídica vigente, tampouco o status civilizacional que exige. Um modus operandi que obstaculiza a atuação do advogado e, reflexivamente, atinge de modo funesto o sistema democrático e seus princípios.
Daí que, como nos lembra Michael Polanyi, “a selvageria está sempre à espreita entre nós, mas ela só pode se manifestar em grande escala quando paixões morais insurgentes destroçam primeiro os controles da civilização” [7].
É o que, em outras palavras, e igual acerto, afirma Cezar Brito:
“A história afirmou o fundamento de que a busca da inviolabilidade profissional apenas possui razão de ser — e objetiva assegurar — a defesa do cidadão, que deve ser altiva, sem peias, é dizer, livre. No sistema jurídico contemporâneo, pautado pela proteção dos fundamentais direitos da pessoa humana, o direito de defesa é base e fundamento do Estado democrático de Direito, fruto de uma longa, lenta e penosa construção humana, de cujos benefícios, testados e atestados em séculos de história, não se pode abrir mão” [8].
Instrumentos jurídicos para que essas prerrogativas sejam respeitadas existem e, recentemente, foram inclusive aumentados. A Lei nº 13.689 de 2019, por exemplo, que tratou do abuso de autoridade, inovou legalmente ao trazer uma série de tipos penais que trazem maior proteção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão e, consequentemente, devem facilitar a sua atuação.
Assim, de acordo com o referido diploma legal, assim como tendo-se em vista o que dispõe o estatuto da advocacia, constituem abuso de autoridade as seguintes condutas:
a) violar o escritório ou local de trabalho do advogado, seus instrumentos de trabalho, sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica ou telemática relativas ao exercício da advocacia;
b) impedir que o advogado comunique-se pessoal e reservadamente com seus clientes, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis; ou ainda impedir que o advogado comunique-se com o seu cliente pessoal e reservadamente antes da audiência judicial, ou sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência; c) lavrar auto de prisão em flagrante do advogado, por motivo ligado ao exercício da advocacia, sem a presença de representante da OAB;
d) deixar de instalar o advogado em sala de Estado maior, quando recolhido preso antes de sentença transitada em julgado;
e) negar ao advogado acesso aos autos de investigação preliminar ou termo circunstanciado, inquérito ou qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias;
f) prosseguir com o interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono [9].
Esse apenas um dos instrumentos que reforçam tudo o que aqui já foi dito e deixam claro o papel inegociável do advogado enquanto sustentáculo do regime democrático e das garantias e direitos que a ele são inerentes.
Apesar dessa regulamentação, contudo, a lei é tímida em sua aplicação, ficando os advogados, defensores dos pilares da democracia, sujeitos a uma série de arbitrariedades, que devem ser combatidas de forma infatigável.
É imperioso, portanto, unir-se em prol da defesa das prerrogativas do advogado, sendo estas uma das salvaguardas irrenunciáveis do Estado Democrático de Direito e de seus corolários: os direitos e garantias fundamentais, direitos conferidos a todos os cidadãos.
Ignorar essa causa, não dando a devida atenção a essas violações, é abdicar, de maneira odioso, de direito e garantias longa e duramente conquistados, que nos levaram ao status civilizacional em que estamos e que, sem os quais, estaríamos jogados à barbárie.
Disse-se no início do texto: violação das prerrogativas ou democracia. Poder-se-ia dizer com igual acerto: valorização da advocacia ou barbárie. É nosso papel, destarte, enquanto operadores do direito, e como cidadãos, combater as violações sistemáticas que recorrentemente somos informados e com as quais, de modo algum, podemos aquiescer.
Referências:
1 – STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, 2. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2016. p. 37.
2 – PACHUKANIS, Evguiéni. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 80.
3 – NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2019. p. 9.
4 –https://www.conjur.com.br/2020-nov-12/advogado-participa-audiencia-cama-hospital
5 – https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/atuacao-oab-advogado-hospitalizado-adiar-audiencia
6 – https://oabdf.org.br/noticias/oabnamidia/delegado-algema-maos-e-pes-de-advogado-que-nao-calou-a-boca-jusdecisum/
7 – POLANYI, Michael. A lógica da liberdade. Rio de Janeiro: Top Books, 2003. p. 27.
8 – BRITTO, Cezar. A inviolabilidade do direito de defesa. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 11.
9 – https://www.conjur.com.br/2020-dez-04/violacao-prerrogativas-advocacia-instrumentos-resposta