Muito se tem discutido, doutrinária e jurisprudencialmente, a respeito de algumas questões controvertidas a respeito do acordo de não persecução penal, instrumento inserido no ordenamento jurídico brasileiro através na Lei nº 13.964/2019, que amplia a chamada Justiça negociada no processo penal, viabilizando — quando preenchidos os requisitos dispostos no artigo 28-A do Código de Processo Penal — acordo entre o dominus litis e o investigado/acusado[1] para impedir a persecutio criminis in judicio, mediante o cumprimento de certas condições.
Sucede que talvez a questão mais complexa a ser solucionada a respeito do instituto, e que certamente irá gerar muita discussão, com argumentos jurídicos de peso tanto para um lado quanto para outro, resume-se na possibilidade do magistrado, em caso de recusa injustificada titular da ação penal pública – obviamente chancelada pelo Ilmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça, nos termos do art. 28-A, §14 do CPP –, avaliar as razões da recusa e, caso entender que o imputado preenche os requisitos legais, ordenar ao ministério público que formule oferta, nos termos da legislação de regência.
A nosso sentir, é plenamente possível ao magistrado fazê-lo, em fiel cumprimento a sua missão constitucional, sem que haja qualquer violação ao sistema acusatório, sendo necessário se ter em mente, como premissa fundamental desta conclusão, que caso o imputado cumpra os requisitos elencados no art. 28-A do Código de Processo Penal, o acordo se traduz em seu direito público subjetivo.
Em outra oportunidade, por também se tratar de tema controvertido, abordamos o aspecto de direito público subjetivo do acordo de não persecução penal em artigo publicado aqui na CONJUR[2], para o qual remetemos o leitor, como leitura imprescindível a compreensão da matéria aqui abordada.
Frisa-se que não se pretende sustentar que poderia o magistrado formular ex officio o acordo de não persecução penal ao imputado, ato que, sem embargo de dúvidas, violaria o sistema acusatório na medida em que o juízo travestir-se-ia de autor/juízo-ator.
Pelo contrário, o que se pretende demonstrar, pela exegese constitucional e legal, é que pode o magistrado, cuja missão constitucional é garantir a eficácia do sistema de direitos e garantias do acusado[3], mediante invocação do imputado, avaliar os motivos da recusa exarada pelo Ministério Público – e chancelada pelo Ilmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça, pois é necessário a remessa, nos termos do art. 28-A, §14 do CPP – em ofertar o acordo.
Nesse contexto, caso entenda ser inviável a motivação de recusa ao acordo, e observe o preenchimento dos requisitos legais por parte do imputado, deve o magistrado reconhecer seu direito subjetivo ao acordo e ordenar ao ministério público que se manifeste acerca de proposta, sem a possibilidade de utilizar como forma de recusa a motivação já declarada inviável.
Ressalte-se que nestes casos, está o magistrado, conforme acima mencionado, mediante invocação, agindo como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias do imputado, este que, por sua vez, teve seu direito ao acordo violado.
Não se está a olvidar que, de fato, o acordo de não persecução penal é ato bilateral resultante da convergência de vontades entre o imputado e o representante ministerial. Inobstante, deve-se ter em mente que não pode o primeiro ficar a mercê da opinião idiossincrática do r. órgão de acusação sobre para quais casos o acordo seria suficiente para reprovação e prevenção do crime e quais casos não seria, sobretudo tendo o legislador balizado a aplicabilidade prática do acordo de não persecução penal por meio dos requisitos objetivos e subjetivos previstos no art. 28-A do Código de Processo Penal.
Com efeito, é indispensável atentar-se para o fato incontroverso de que o próprio legislador outorgou ao togado poderes de controle da legalidade acerca do acordo de não persecução penal, na medida em que lhe autorizou a “verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade“ (art. 28-A, §4º do CPP), bem como lhe autorizou a devolver os autos ao r. membro do MP para que “seja reformulada a proposta de acordo”, caso considere “inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal” (art. 28-A, §5º do CPP).
Dessa forma, pensamos que seria insanidade aduzir que não pode o magistrado, no controle da legalidade processual e como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias do acusado, analisar os motivos da recusa de proposta de acordo formulada pelo e. membro do parquet e decidir acerca de sua idoneidade.
Isso porque, considerando o poder do magistrado de julgar insuficientes as condições estabelecidas na minuta de acordo, podendo barrar a sua perfectibilização (deixando de homologar) e determinar (e determinar aqui tem sentido de ordem) ao Ministério Público que faça uma reformulação, conclui-se verdadeira – e amparada pelos mais comezinhos princípios constitucionais – a assertiva de que também pode o magistrado analisar a recusa de proposta ao acordo e decidir acerca de sua idoneidade. Afinal, vale relembrar aqui a expressão latina a maiori, ad minus.
Em singelo epílogo, pensamos que da mesma forma que pode o magistrado verificar a legalidade do acordo (art. 28-A, §4º do CPP), bem como pode decidir se as condições entabuladas pelas partes (MP e imputado) são suficientes para reprovação e prevenção do crime, determinando, inclusive, que sejam reformuladas as cláusulas (art. 28-A, §5º do CPP), certamente pode o menos que, no caso, é analisar se os motivos elencados pelo Ministério Público para se recusar a ofertar o acordo são suficientes.
Mas não é só.
É necessário demonstrar, ainda, que a conclusão defendida neste artigo encontra alicerce no sedimentado magistério jurisprudencial tanto do c. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bem como o eg. Supremo Tribunal Federal
Para tanto, considerando a novidade da temática pela recente entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, utilizaremos as balizas jurisprudenciais já sedimentadas a respeito do sursis processual, sobretudo por ambos serem institutos despenalizadores que ampliam a chamada Justiça negociada no processo penal, relativizando o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.
Outrossim, é inquestionável a similitude de requisitos objetivos e subjetivos para a formalização de ambos os institutos (acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo), havendo, na prática, inclusive certa confusão quanto à aplicabilidade de um ou de outro.
Nesse contexto, impende salientar que o Eg. TJSP, analisando habeas corpus impetrado em razão de recusa do e. representante ministerial em ofertar a suspensão condicional do processo, chancelada pelo Ilmo. Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, entendeu pela possibilidade do magistrado avaliar se a recusa é injustificada, bem como asseverou que, caso positiva a resposta e verificando-se que o imputado cumpre os requisitos legais indicados na legislação de regência, o instituto (sursis processual) é seu direito subjetivo. Veja-se:
“HABEAS CORPUS – Crime ambiental – Art. 56, caput, da Lei nº 9.605/98 – Insurgência contra o não oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo – Remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, pelo magistrado a quo, nos termos do art. 28 do CPP – Descabimento – Anulação do feito desde referida decisão – Verificada a existência do direito público subjetivo do réu – Presença de condenação anterior, já alcançada, entretanto, pelo prazo depurativo dos efeitos da reincidência Inércia da autoridade impetrada – Ordem concedida.”[4]
Na mesma linha de intelecção é o entendimento consolidado no eg. Supremo Tribunal Federal, colocando-se, assim, uma pá de cal no assunto em discussão:
“HABEAS CORPUS ATO INDIVIDUAL. O habeas corpus mostra-se adequado quer se trate de ato individual, quer de Colegiado. PROCESSO SUSPENSÃO CONDICIONAL REQUISITOS ATENDIMENTO ACUSADO DIREITO SUBJETIVO.
Uma vez atendidos os requisitos do artigo 89 da Lei nº 9.099/1995, cumpre implementar a suspensão condicional do processo, podendo o Juízo atuar, nesse campo, de ofício.”[5]
Percebe-se que no julgado acima colacionado, o eg. Pretório Excelso foi até mesmo além do que aqui se defende, firmando entendimento de que caso o r. órgão ministerial esquive-se de ofertar o instituto (sursis processual) quando o acusado cumpre os requisitos legais para tanto, mediante recusa injustificada, pode o Juízo atuar ex officio, ofertando o instituto despenalizador, justamente porque em casos como este, estaria atuando como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias do acusado.
Imperioso colacionar, ainda, o magistério doutrinário do saudoso jurista Aury Lopes Jr, comentando o novel acordo de não persecução penal. Veja-se:
“Como se trata de direito público subjetivo do imputado, presentes os requisitos legais, ele tem direito aos benefícios do acordo. Não se trata, sublinhe-se, de atribuir ao juiz um papel de autor, ou mesmo de juiz-ator, característica do sistema inquisitório e incompatível com o modelo constitucional-acusatório por nós defendido. Nada disso. A sistemática é outra. O imputado postula o reconhecimento de um direito (o direito ao acordo de não persecução penal) que lhe está sendo negado pelo Ministério Público, e o juiz decide, mediante invocação. O papel do juiz aqui é o de garantidor da máxima eficácia do sistema de direitos do réu, ou seja, sua verdadeira missão constitucional”[6]. (Grifamos)
Assim, ancorando-se em balizado entendimento jurisprudencial e doutrinário trazidos à colação no presente artigo, é cediço que da mesma forma que na suspensão condicional do processo pode o magistrado decidir acerca da fiabilidade dos motivos que ensejaram a recusa por parte do Ministério Público, igualmente acertado concluir que também pode proceder desta forma no caso de recusa ao acordo de não persecução penal (instituto despenalizador análogo a suspensão condicional do processo, que com ela possui intangível similitude de requisitos objetivos e subjetivos para celebração).
Destarte, a nosso sentir, é plenamente possível ao magistrado, em fiel observância a sua missão constitucional, ordenar que o ministério público formule proposta de acordo ao imputado, quando reputar injustificada a recusa do parquet e entender que o investigado/acusado cumpre os requisitos estabelecidos pela legislação de regência para usufruir das benesses do novel acordo de não persecução penal.
[1] Elenca-se o “acusado” considerando que que o legislador, ao criar uma nova causa extintiva da punibilidade (artigo 28-A, §3º, do CPP), atribuiu ao acordo de não persecução penal natureza híbrida de norma processual e norma penal, sendo inequívoco que deve retroagir para beneficiar o agente, conforme artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, devendo ser aplicada a todos os processos em curso, ainda não sentenciados, até a entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019.
[2] AGACCI, Mathaus. Acordo de não persecução penal é direito público subjetivo do acusado, 2020. Disponível em: ConJur – Mathaus Agacci: Sobre o acordo de não persecução penal
[3] JÚNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
[4] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. HC 21885334520198260000/SP 2188533-45.2019.8.26.0000, Relator: Edison Brandão, Data de Julgamento: 24/09/2019, 4ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 30/09/2019.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 136.053/SP. Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 07/08/2018, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-201 24-09-2018.
[6] JÚNIOR, Aury Lopes. Direito processual penal. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Luis Felipe da Silva Mathias
Advogado (OAB/SC 62.827)
CNPJ: 81.531.733/0001-54
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