A prática das fishing expeditions configura “a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem “causa provável”, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém”[1].
Num momento histórico marcado por estados de exceção, onde a ilusória busca pela verdade real vai de encontro aos direitos daquele que sofre a persecução penal, o senso comum pensaria que os fins justificam os meios em casos como este. Nesse sentido, como trata Thalita Santos:
O que ocorre mais vezes do que gostaríamos, porém, é que, baseados em especulações, “notícias anônimas”, colaborações premiadas (que muitas vezes não servem à elucidação dos fatos), deflagram-se operações, interceptam-se linhas telefônicas e outros dados sensíveis, vasculham o asilo inviolável (casa) no intento de buscar todo e qualquer vestígio, ou indício que se enquadre em qualquer conduta delitiva, para corroborar o ato, e não o contrário como manda a lei, fazendo da persecução penal uma verdadeira pescaria probatória, em que qualquer ‘pescado’ (indício de materialidade de qualquer crime — mesmo que não seja o investigado) sirva para, através do clamor social, respaldar o ato ilegal.[2]
Diante disso é necessária a intervenção dos tribunais superiores para afirmar muitas vezes o óbvio e resguardar os direitos individuais diante de comoções sociais, cenários políticos ou até mesmo frente à cultura punitivista.
Há quem pense que tal pronunciamento dos tribunais, que agora menciona claramente o termo norte-americano, é algo recente como a nomenclatura dada. Contudo, a pescaria probatória é uma prática recorrente, notadamente no âmbito das grandes operações. Nesse sentido temos o julgamento do AgRg no Inq. nº 2.245/MG pelo Supremo Tribunal Federal, em 2006, ao expor uma situação de quebra de sigilo bancário de listagem genérica dispondo que “configura-se ilegítima a quebra de sigilo bancário de listagem genérica, com nomes de pessoas não relacionados diretamente com as investigações (art. 5º, inc. X, da Constituição da República”[3].
Dito isso, frente ao conceito cirúrgico apontado do termo pescaria probatória, são incontáveis as variáveis possíveis de medidas investigativas que poderiam se enquadrar na hipótese. Por exemplo, Philipe Benoni Melo e Silva expõe que “como modelo de busca de provas amplo que é, o fishing expedition tem largo campo de possível ocorrência: oitiva de testemunhas, interrogatórios, mandados judiciais muito amplos, interceptação telefônica prospectiva, cooperação jurídica internacional, etc”[4].
Mais recentemente, quanto ao desvio de finalidade consistente na ultrapassagem dos limites autorizados, a suprema corte brasileira tem entendido pelo reconhecimento da ilicitude das provas colhidas.
Ao julgar o HC 163.461, o E. STF reconheceu a ilicitude de provas colhidas em local diverso daqueles constantes no rol da decisão autorizadora [5] em caso onde a busca e apreensão foi realizada na casa de pessoas físicas, em que pese constarem apenas endereços de pessoas jurídicas no rol autorizado.
Da mesma forma, no HC 106.566, o Supremo Tribunal Federal determinou a inutilização das provas colhidas em endereço diverso daquele do mandado, sem autorização judicial, num caso onde o mandado estava “perfeitamente delimitado”.
Já o Superior Tribunal de Justiça, também quanto ao desvio de finalidade, decidiu pela impossibilidade de vasculhamento do domicílio quando do cumprimento de mandado de prisão, o que configura verdadeira pescaria probatória, ao julgar o HC 663.055/MT, de relatoria do Min. Rogério Schietti Cruz.
A interceptação de prospecção, mencionada anteriormente, consiste na tentativa, por meio da quebra do sigilo telefônico, da pesca de elemento probatório capaz de vincular o agente com qualquer conduta criminosa. Quanto ao tema, o E. STJ decidiu que “não existe intercepção apenas para sondar, para pesquisar se há indícios de que a pessoa praticou o crime, para descobrir se um indivíduo está envolvido em algum delito”[6].
Ainda, no recentíssimo julgamento do RHC 165.982/PR, entendeu que “admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade”[7].
No mesmo acórdão, determinou que “o agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo, vinculado à justa causa, para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas”.
O encontro fortuito, que decorre, no Brasil, da aplicação do princípio da serendipidade, é a descoberta por acaso de prova relacionada a fato diverso daquele que está sendo investigado. Doutrinariamente, é também denominado de crime achado e consiste na obtenção casual de elemento probatório de um crime no curso da investigação de outro.
A serendipidade pode ser classificada como de primeiro ou de segundo grau. O fator usado para sua distinção é a existência de conexão ou continência, isto é, quando a prova obtida guardar relação com o objeto inicial da investigação ou com pessoa envolvida, trata-se de serendipidade de primeiro grau. Em contrapartida, será de segundo grau quando não houver vínculo e, por essa razão, a prova somente poderá ser utilizada como notitia criminis.
Desse modo, o STJ utilizou a serendipidade de segundo grau como base principiológica para justificar a aceitação da prova fortuitamente obtida mesmo nos casos em que não há qualquer vínculo entre os crimes. Nesse sentido o excerto a seguir, extraído do acórdão da Ação Penal n. 690/TO, de relatoria do Min. João Otávio de Noronha:
(…) A interceptação telefônica vale não apenas para o crime investigado inicialmente mas também para outros até então não identificados que se relacionem, de alguma forma, com as pessoas que sofrem a interceptação. Nessa hipótese, deve-se iniciar investigação à parte para apurar os fatos novos, exatamente como foi feito […] A “serendipidade” não pode ser interpretada como ilegal ou inconstitucional simplesmente porque o objeto da interceptação não era o fato posteriormente descoberto. Claro que, no caso, deve-se abrir novo procedimento específico, como aconteceu neste episódio, mas não entender como nula tout court a prova obtida ao acaso […] Não se desconhece a respeitosa doutrina que discorda do aproveitamento fortuito da interceptação telefônica quando os crimes não são conexos ou relativo a pessoas que não eram objeto da escuta […] Aqui, opto pela orientação do STJ […] ou seja, que a prova é admitida para pessoas ou crimes diversos daquele originalmente perseguido, ainda que não conexos ou continentes, desde que a interceptação seja legal[8].
O E. STF, acerca do tema, mais especificamente na esfera das interceptações telefônicas, tem decidido pela validade do encontro fortuito da prova. Dos julgados mais recentes podemos extrair os seguintes: HC 106.225/SP, Primeira Turma, Relator para o acórdão o Min. Luiz Fux, DJe 22/3/2012; RHC 120.111/SP, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe 31/3/2014.
Sem que se faça maior aprofundamento no instituto do encontro fortuito, percebe-se que a principal diferença deste em relação a prática das fishing expeditions é que, enquanto no primeiro caso o elemento probatório é encontrado por acaso, mas dentro dos limites de ordem judicial limitadora, no segundo caso há iniciativa da autoridade titular da investigação para utilização de meios de investigação infundados, sem que haja quaisquer indícios capazes de autorizar as medidas realizadas, a fim de pescar qualquer elemento hábil a impulsionar uma futura investigação criminal diversa.
Infere-se, portanto, que o processo penal respira ao ver a evolução jurisprudencial no sentido de respeitar a delimitação das decisões autorizadoras, protegendo os direitos fundamentais do investigado, que podem ser sim relativizados e restringidos, mas mediante autorização fundamentada. Ainda, a atenção deve ser voltada para “a vinculação causal da prova como forma de evitar-se o substancialismo inquisitório e as investigações genéricas, verdadeiros “arrastões” sem qualquer vinculação com a causa que os originou”[9], como firma Aury Lopes Jr.
Contudo, é necessário enorme avanço na imparcialidade dos agentes públicos responsáveis por tais expedições a fim de que possamos superar a noção antiga de que o resultado da investigação supera sua ilegalidade.
Isso porque, como acertadamente preceitua Jorge Henrique Schaefer Martins, “a sanha acusatória e o frenesi da responsabilização criminal não podem ser considerados como álibis para o Estado descumprir as determinações legais e, mais que isso, para desprezar princípios e garantias constitucionais”[10].
Enquanto esse avanço ocorre, “aguardamos, sinceramente, o fim da temporada de pescas”[11].
REFERÊNCIAS
[1] ROSA, Alexandre Morais da. A prática de fishing expedition no processo penal. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal. Acesso em: 21 de out. de 2022.
[2] SANTOS, Thalita. Vedação da fishing expedition na persecução penal. Consultor Jurídico, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-24/thalita-santos-vedacao-fishing-expedition-persecucao-penal. Acesso em: 21 de out. de 2022.
[3] Supremo Tribunal Federal.Inq-AgR: 2245 MG, Relator: JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 29/11/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC 09-11-2007 DJ 09-11-2007 PP-00031 EMENT VOL-02298-02 PP-01144.
[4] MELO E SILVA, Philipe Benoni. Fishing Expedition: a pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação. Disponível em: http://jota.info/artigos/fishing-expedition-21012017. Acesso em 21 de out. de 2022.
[5] HC 163.461, Relato: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 05/02/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-192 DIVULG 31-07-2020 PUBLIC 03-08-2020.
[6] AgRg no REsp 1.154.376/MG, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma do STJ, julgado em 16/05/2013, DJe 29/05/2013.
[7] RHC 165.982/PR, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/9/2022, DJe de 26/9/2022.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ação Penal nº690/ TO, relator ministro João Otávio de Noronha, julgado em 15/04/2015. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/190535334/acao-penal-apn-690-to-2007-0170824-2/relatorio-e-voto-190535335 Acesso em 31/10/2016.
[9] LOPES JUNIOR, AURY. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020, p. 622.
[10] MARTINS, J. H. S. Prender ou não prender. Critérios, adequação, necessidade – a escolha entre a prisão provisória, as medidas cautelares e a liberdade. In: Graziano Sobrinho, Sérgio Francisco Carlos (Org.); Andrade, Lédio Rosa de (Org.) ; Silva, Jaílson Lima da (Org.) . Em nome da inocência: Justiça. 1. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2017. v. 1. 256p. p. 33 – 44. [11] FERNANDES B. NETTO, FERNANDA. Fishing expedition: Os fins justificam os meios? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-11/luisa-netto-fins-justificam-meios. Acesso no dia 12 de maio de 2022.