INTRODUÇÃO
Quando se lê e ouve falar em ataques à instituições e à própria democracia, vê-se a necessidade de reflexões e de rememorar fatos não tão distantes da história.
Brasil e Argentina, sem falar em outras pátrias da América Latina, tiveram períodos obscuros recentemente, ante a tomada do poder pelos militares no ano de 1964 (Brasil) e 1976 (Argentina), quando em ambos os países os governantes militares impuseram aos opositores dos respectivos regimes o medo através da violência, da supressão de direitos individuais, de torturas, de desaparecimentos e do elevado custo de vidas perdidas, deixando como legado muito sofrimento, marcas profundas em suas populações e histórias, além de grande prejuízo à evolução de suas democracias e ao desenvolvimento dos direitos humanos.
No Brasil, a programação de retorno dos civis ao governo[1] contou com a lei de anistia que permitiu a soltura de presos, a aparição de quem se encontrava escondido além do regresso de muitos exilados e também impediu o julgamento de militares, autores de crimes comuns diversos contra quem reagiu à ditadura.
A questão referente à responsabilização ou não dos militares por fatos criminosos havidos durante os regimes autocráticos, teve contornos distintos nos dois países, vendo-se punições, e severas, na Argentina, ao passo que no Brasil optou-se por não se revolver os episódios. Isto provocou reações contrárias, como levou o Supremo Tribunal Federal a ter o tema em sua pauta de julgamento, o que será objeto desta digressão.
- A DIFERENÇA DE TRATAMENTO NA ARGENTINA E BRASIL
A Argentina sofreu situação mais traumática que o Brasil quando da ditadura militar, pois os governos que se sucederam foram mais ferozes na repressão de seus opositores, registrando-se muitos desaparecimentos, torturas, assassinatos, sequestros de crianças filhas de vítimas torturadas e/ou mortas, destacando-se tristemente os célebres “voos da morte”, nos quais mais de 4.000 pessoas, depois de drogadas, foram lançadas ao mar de aviões militares. Comprovada posteriormente a cruel e inaceitável existência de plano sistemático de eliminação houve a abertura de processo e julgamento de 54 militares a quem se atribuiu a responsabilidade, restando condenados, alguns à prisão perpétua[2].
Nesse contexto de verificação de culpas, foi levado a julgamento em sua Corte Suprema de Justicia, o caso “Espósito”, em razão de haver ele (Miguel Ángel Espósito) provocado a morte de Walter David Bulacio, durante o regime militar.
Na apreciação de insurgência contra decisão de instância inferior que reconheceu em seu favor a prescrição, houve clara influência e até interferência de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que assinalou que “son inadmisibles las disposiciones de prescripción o cualquier obstáculo de derecho interno mediante el cual se pretenda impedir la investigación y sanción de los responsables de las violaciones de derechos humanos“[3], o que determinou que em sede de apreciação na Corte Suprema de Justicia de La Nación restasse afastada referida causa de extinção da punibilidade, estabelecendo-se fosse ele submetido a novo pronunciamento judicial com base nos fatos apurados[4].
Busca-se o entrelaçamento entre o julgamento no Supremo Tribunal Federal brasileiro, que será objeto de apresentação e apreciação na sequência, com o caso mencionado, levado a julgamento na Corte Superior de Justiça da Argentina em razão das discussões judiciais envolverem a possibilidade ou não de incriminação de autores de crimes contra a humanidade, envolvendo a supremacia da análise de questões relacionadas à defesa do homem, de sua integridade e sua liberdade e sua eventual prevalência sobre outros direitos e institutos.
A abordagem fará breve análise do julgamento feito pelo Supremo Tribunal Federal sobre a intenção de não incidência da lei e consequente averiguação e submissão a juízo dos crimes comuns havidos no período militar e praticados por agentes estatais, nos quais atentou-se contra os direitos humanos, tema sensível e espinhoso até os dias de hoje.
- ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA
A anistia dos crimes havidos durante o regime militar brasileiro (1964/1985) ocorreu depois de tratativas entre as forças democráticas e os militares que estavam no poder, estes últimos com a preocupação de evitar que os delitos cometidos pelas forças públicas pudessem ser levados a julgamento e, por consequência, ocorrer a exposição de seus autores e dos porões do regime, além de ficarem sujeitos às sanções legais próprias às ofensas praticadas[5].
A lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979[6] ao estabelecer a anistia, teria, em tese, prevenido a busca da responsabilização pelos autores de violências as mais diversas contra os que foram torturados, feridos, mortos e desaparecidos, dos quais não se têm notícia porque não encontrados até os dias de hoje.
Mas é exatamente esta delimitação que é objeto da presente digressão.
- A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O assunto foi arguido perante o Supremo Tribunal Federal[7] e julgado na data de 29 de abril de 2010, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153 do Distrito Federal[8], sob a relatoria do Ministro Eros Grau, analisando-se o argumento de que o texto da lei não era compatível com as normas da nova Constituição de 1988, porque não se pode ampliar sua aplicação aos casos de homicídio, desaparecimentos forçados, abuso de autoridade, lesões corporais, crimes sexuais cometidos contra os opositores do regime militar etc.
Segundo os termos da petição, a aceitação do artigo 1º, § 1º da lei n. 6.683, importaria em ofensa ao (a) dever do Poder Público de não ocultar a verdade; (b) aos princípios democráticos e republicanos; (c) ao princípio da dignidade humana, além de se registrar que as compensações econômicas disponibilizadas às vítimas ou seus parentes, não foram e nunca serão suficientes para compensar o sofrimento e a angústia decorrente de tais atos brutais, além de não se admitir que crimes comuns sejam tratados como crimes políticos.
A impugnação não foi acolhida por maioria de votos, sendo este o posicionamento do Ministro Eros Grau, responsável pelo voto condutor, sem embargo de posicionamentos contrários à sua manifestação por razões obviamente distintas[9].
- O entendimento predominante
O voto do Ministro Eros Grau efetuou a análise de diversas questões: (i) a primeira linha de argumentação foi no sentido de enfrentar a questão sob a ótica da impossibilidade da lei atingir crimes comuns e não haver sido recepcionada pela Constituição; (ii) depois, a contestação à constitucionalidade da legislação ante a ofensa ao princípio constitucional do art. 5º, caput da Constituição Federal, que trata da isonomia em diversas matérias, inclusive de segurança, dando-se afronta ao direito de informações de interesse particular ou coletivo pelos órgãos públicos, estabelecido no art. 5º em seu inciso XXXIII; (iii) questionamento da lei por contradizer os princípios democráticos e republicanos, pois os atores responsáveis pelos ilícitos eram funcionários públicos e, logicamente, seus salários provinham do tesouro; (iv) a questionável legitimidade de sua aprovação, pois votada em Parlamento onde havia Senadores escolhidos por eleição indireta (“senadores biônicos”), tendo sido sancionada por um General Presidente que não foi eleito pela população, mas aceito pelo Parlamento após indicação de seus companheiros de farda e graduação (generais); (v) ofensa à dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro, valores que não podiam ser negociados.
Nenhum dos aspectos apresentados foi aceito, tendo sido apresentada digressão jurídica alentada, embora tenha ficado explícita a influência de questões de ordem política, quando se disse que a anistia não se construiu sem uma verdadeira batalha, sendo representativa da página mais vibrante de resistência e atividade democrática da história brasileira, onde as vítimas tiveram que ceder aos detentores do comando político (militares) para alcançá-la, resultando a imposição da total amplitude e reciprocidade.
O voto enfatizou que a Suprema Corte brasileira historicamente tem decidido que em tema de anistia, a interpretação deve ser ampla e generosa, para não haver risco de frustrar seus propósitos político-legais[10], como afirmou que a “lei-medida” deve ser interpretada no conjunto de seu texto, com a realidade histórica e considerando o momento onde foi editada, não se considerando a realidade atual. Falou, ainda, sobre a conexão sui generis entre os crimes comuns e políticos, ante o caráter bilateral da anistia, ampla e geral. Asseverou que a revisão da anistia não é da responsabilidade do Poder Judiciário, competindo a tarefa ao Poder Legislativo, como, aliás, ocorreu no Chile, Argentina e Uruguai.
Finalizou dizendo que a emenda constitucional número 26 do ano de 1985, em seu artigo 4º, § 1º, disciplinou de forma definitiva o problema, constitucionalizando a anistia de forma categórica.
- A posição divergente
A divergência foi inaugurada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, ao mencionar que a lei de anistia não surgiu de “um contexto de concessões mútuas e obedecendo a uma espécie de ‘acordo tácito’”; pois em realidade foi consequência de uma série de fatores, dentre os quais influências internacionais[11], circunstâncias que pressionaram os militares a ceder em suas posições.
Mencionou Thomas Hobbes, ao dizer que “o legislador não é aquela por cuja autoridade as leis pela primeira vez foram feitas, mas aquele por cuja autoridade elas continuam a ser leis”, e por isso a tarefa de interpretação está a exigir que se vá além da vontade legislativa. Divergiu deste modo, frontalmente do raciocínio apresentado pelo relator, por entender que a aplicabilidade da lei no momento prevalece sobre o tempo em que foi editada.
Sobre a conexão entre crimes comuns e políticos, disse não existir maneira de se estabelecer um vínculo material entre os crimes políticos praticados pelos opositores do regime e os crimes comuns atribuídos aos agentes estatais, de maneira a permitir que a eles fosse dado idêntico tratamento jurídico.
Apresentou o elenco de crimes comuns relacionados com os agentes estatais, falando sobre a tortura e o abuso de autoridade, destacando que os agentes estatais estavam obrigados a respeitar os compromissos internacionais sobre o direito humanitário, dos quais o Brasil é signatário desde o século passado.
Explicou que a Corte (STF) faz distinção entre os crimes políticos típicos e os relativos (hard cases), com o uso de critérios da preponderância e da atrocidade dos meios, com a observação caso a caso, utilizando-se ferramental próprio para distinguir as situações.
De acordo com sua interpretação, pensar-se diversamente significa negar-se a jurisdição, preceito básico da Constituição brasileira. Externou o entendimento de que a compreensão de que os agentes políticos atuantes durante a ditadura teriam sido obrigatoriamente beneficiados pela anistia, não é aceitável porquanto inviável a aplicação de automatismo, de abrangência indiscriminada, devendo-se utilizar a ponderação individual.
Por sua vez, o Ministro Ayres Britto manifestou que não viu no texto da lei de anistia a determinação de que os crimes comuns, em especial os atrozes, tenham sido por ela alcançados, mesmo que tivessem sido cometidos por motivação política.
Em sua compreensão, a dicotomia entre as espécies de crimes é evidente, tendo atacado de maneira dura os torturadores e os agentes que cometeram grandes excessos, com quem disse não ser admissível a condescendência, pois a anistia diz respeito somente aos crimes políticos, enquanto os militares que desonraram as Forças Armadas, o Estado, a Pátria e o próprio Deus, não podem ser tratados em igualdade de condições com os militares honrados que acreditavam em uma estruturação estatal e em uma forma de governo boa para o Brasil.
- ANÁLISE DO JULGADO
O tema central do julgamento foi o enfrentamento do tema referente à ofensa aos direitos humanos, assunto que ainda sensível na América do Sul e em especial no Brasil, pois no século XX muitos foram os golpes de Estado, inúmeros foram os ditadores e governos militares e onde a democracia sempre esteve em risco.
A apreciação do ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal aconteceu no ano de 2010, passados 24 anos do retorno à democracia[12], quando o temor de que as instituições e ela própria pudessem sofrer problemas eram normais e atuais, como ainda o são.
É de fácil constatação que a solução que determinou a aceitação da plena extensão da eliminação de responsabilização daqueles a quem se imputou atos subversivos e concomitantemente aos militares que cometeram crimes comuns e abusos aos direitos humanos, teve forte e decisivo componente político, um “arranjo” para não melindrar as forças armadas.
Ademais, o uso da Emenda Constitucional número 26 de 1985, em seu artigo 4º, § 1º como motivação para estabelecer-se que houve a constitucionalização da anistia de maneira categórica, torna-se discutível na medida em que se trata de disposição de Carta política anterior.
A doutrina ensina que no Brasil aplica-se o princípio da continuidade da Ordem Jurídica, que significa o aproveitamento dos atos legislativos anteriores quando compatíveis com a nova Constituição[13], fenômeno denominado de recepção, no qual é necessária a observação da existência de compatibilidade entre a norma anterior e a nova ordem.
Considerando-se existir uma lei ordinária anterior à Constituição de 1988 e uma disposição constitucional da Constituição de 1967, com a Emenda número 1 de 1969, à qual se agregou a EC n. 26, indispensável a observação do que estabeleceu o texto constitucional de 1988 para constatar se ele o disciplinou de alguma forma.
Poderia ser utilizada como argumento de recepção da lei, a ausência de deliberação especifica a respeito na Carta Constitucional de 1988 e, também, a regra estabelecida no art. 5º, inciso XL[14], que trata da irretroatividade da norma penal maléfica, o que compreenderia também a interpretação in malam partem.
Em contraposição está a consideração do caráter violento, desumano e extremamente atentatório aos direitos humanos naquele período determinado, com prisões sem processo, torturas, desaparecimentos e mortes, exigindo um exame aprofundado e particularizado de cada evento.
Ainda a ponderar que a Constituição brasileira atualmente em vigor, prevê que crimes que atentem contra os direitos e liberdades fundamentais, racismo, terrorismo, ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o estado democrático[15], são de especial gravidade. Este aspecto contém poderoso argumento a justificar óbice à admissão de ter a anistia alcançado os crimes comuns praticados por militares, isto é não ter sido “recepcionada” pela Constituição Cidadã, a fim de privilegiar-se acima de qualquer outro interesse, os direitos humanos universais, interesse e objetivo da nação e de todos os povos do mundo.
Além disso, sendo o Brasil signatário do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional[16], no qual há previsão dos crimes contra a humanidade em seu artigo 7º[17], crimes que, conforme estabelece o artigo 29[18] do mesmo diploma são imprescritíveis, a exegese se mostra mais consentânea com todo o contexto, estando conforme com a tese que restou minoritária no julgamento em discussão.
Ainda a ser relembrado o que diz a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984), adotada pela Resolução 39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1984 e ratificada pelo Brasil em 28.09.1989, especialmente em seu art. 1º, que define a tortura[19] e art. 2º, que inadmite qualquer justificativa para sua utilização[20].
Retornando ao voto, é de salientar que no transcurso da troca de ideias houve manifestação a respeito do que dispõem tratados internacionais, pois existente menção a argumentos interpretativos que se distanciavam da normativa internacional foram o destaque no voto dos ministros […] A discussão em torno do que seria uma interpretação do art. 1º, § 1º, da Lei de Anistia conforme os preceitos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 teve pouco destaque[21].
Assim, a concepção de ter o alargamento dos efeitos da anistia ocorrido com o interesse de pacificação, mesmo que de certa maneira imposta, possui um fundo relativo de verdade, posto que a negociação contou com desigualdade de forças entre as partes – o que já a coloca como duvidosa pela disparidade de potência entre os representantes de cada parte envolvida – e a fórmula utilizada foi extremamente leniente com a ditadura, ao deixar impunes os crimes comuns praticados por militares durante o período, o que não poderia ter sido descartado por questão de justiça e, principalmente por respeito às vítimas e seus familiares, afrontando orientação internacional de combate à prática de crimes contra os direitos humanos.
Isto se afirma porque a decisão na ADPF 153 seguiu na contramão da orientação advinda da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que foi reafirmado ao se constatar o conflito com as recomendações da Comissão Nacional da Verdade que encerrou seus trabalhos no ano de 2014[22].
Este importante resgate trouxe como resultado de suas pesquisas a identificação de 377 agentes do Estado envolvidos em crimes contra os direitos humanos no período 1964/1985, estando vivos 190 quando da finalização dos trabalhos em 2014.
O relatório apresenta resultados que envergonham a nação, pois:
Nas mais de 1.300 páginas entregues à presidenta Dilma Rousseff, ela própria presa e torturada pelos militares e ouvida no documento, o texto detalha, além dos métodos de tortura, execuções, ocultação de cadáveres, detenções ilegais e desaparecimentos forçados que, “dada a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, e não são passíveis de anistia”.
Pelo relatório desfilam depoimentos de mulheres violentadas; de mães que perderam os filhos; de militantes políticos que perderam seus companheiros; de advogados que andavam de lá para cá o dia todo com uma máquina de escrever em um carro para defender os detidos; de assassinos que descrevem como matavam impiedosamente. Descrevem-se ainda os lugares de tortura, as celas, as empresas envolvidas e as ramificações internacionais da repressão brasileira, entre outros capítulos dessa época pavorosa.
Por isto é possível dizer que apesar da existência de argumentos jurídicos na sustentação da tese que entendeu pela improcedência da ADPF 153, olvidou-se de perspectiva que se mostra muito mais relevante, como bem demonstrado pelos votos vencidos, consistente na prevalência, sempre, dos direitos humanos em sua plenitude.
- CONCLUSÃO
Em tempos nos quais se busca a valorização do ser humano, o respeito aos indivíduos, a convivência de ideias de todas as ordens, a diversidade de gênero, as opções religiosas, a solidariedade humana, a ampliação desmedida do instituto da anistia que tinha por objeto devolver o país à normalidade democrática, contemplando assassinos, torturadores, criminosos sexuais, é a síntese da distorção de seus propósitos, o que se mostra inaceitável.
As tentativas de mascarar a realidade das ações das forças de repressão foram inúmeras[23], vendo-se na consagração da anistia um grande trunfo para ocultar fatos e impedir a identificação de seus autores. Neste ponto é de se ressaltar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que foi o responsável pelo aclaramento dos acontecimentos, com satisfação aos familiares das vítimas e à nação.
O perdão inerente à conclusão majoritária deixou no ar o sentimento de injustiça, de impunidade e, mais que isso, a sensação de que o que houve foi correto ou valeu a pena, pois faltou destemor para enfrentar o interesse dos militares que, por corporativismo e sobrevivência resistiam às punições, o que seguramente não representa o sentimento daqueles que agiram dentro dos limites da lei, muito menos da esmagadora maioria da população que repugna atos covardes e violentos.
A Constituição brasileira em seu preâmbulo assegura a ampla liberdade e o Estado democrático[24], como firma seus objetivos fundamentais em seu artigo 3º[25], entre eles uma sociedade livre, justa e solidária.
Por isto, na defesa dos direitos fundamentais se deve considerar crear y mantener las condiciones básicas para asegurar el desarrollo de la vida del hombre en libertad, en condiciones compatibles con la dignidad humana […] esta libertad presupone seres humanos y ciudadanos con capacidad y voluntad para decidir por sí mismos sobre sus propios asuntos y para colaborar responsablemente en la sociedad públicamente constituida como comunidad”.[26] [27]
E não se pode esquecer que Aún cuando existen planteamientos legislativos, jurisprudenciales o doctrinarios que defienden una jerarquía de derechos, considero que esta tesis soslaya el dato fundamental – ya anticipado – de que detrás de todas estas construcciones se halla la persona humana, por lo que jerarquizar derechos, en última instancia, es privilegiar ciertos “bienes básicos” sobre otros, lo cual va en detrimento del único destinatario de dicha protección.[28] [29]
A interpretação indulgente dos crimes contra os direitos humanos e a humanidade não é conciliável com referidos propósitos, com a finalidade de proteção e valorização do ser humano em sua amplitude. A apreciação judicial não pode deixar de lado os princípios universais representados por interesses gerais da preservação das liberdades dos cidadãos, suas integridades físicas e mentais, para beneficiar criminosos que atentaram contra suas vidas, saúde e liberdade a pretexto político e por submissão à força militar.
Vê-se o exemplo da Alemanha, protagonista de crimes horrendos durante o período nazista, mas que não os esconde, ao contrário, faz questão de mostrá-los como forma de educar a população e estar alerta a quem manifeste vocação para o ressurgimento de ideias de supremacia, violentas e racistas[30].
O reconhecimento de valores superiores deve ser feito de maneira a evitar-se, sempre, o risco de reiteração, enquanto o esquecimento favorece o ressurgimento de ideias e práticas condenáveis.
[1] Que ocorreu em 1986, com a posse do Presidente José Sarney.
[2] Responsáveis por “voos da morte” na ditadura argentina pegam prisão perpétua. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/29/internacional/1511961825_111897.html. acesso em 13 de setembro de 2021.
[3] “São inadmissíveis as disposições de prescrição o qualquer obstáculo de direito interno mediante o qual se pretenda impedir a investigação e sanção dos responsáveis pelas violações de direitos humanos”. Trad. Livre.
[4] Conforme texto disponibilizado aos alunos da disciplina Filosofía del Derecho del curso de Doctorado en Derecho Penal da Universidad de Buenos Aires, em julho de 2021, contendo o parecer do Fiscal General de La Procuración General de La Nación e o Fallo de la Corte Suprema de Justicia.
[5] “Após ser atingido por um esgotamento moral e político, depois da retirada do apoio dos Estados Unidos da América, principal mentor do regime, em 1976, começou-se a preparar a retirada estratégica dos militares do poder. Isto decorreu também do perigo da revolução comunista que já havia passado e da guerra fria ter começado a “esfriar” diante dos novos rumos que apontava a política no leste europeu. A ditadura sofria também constantes condenações internacionais, incluindo aí à contraditória posição dos Estados Unidos que, na assembleia das nações condenavam as, que eles mesmos chamavam, ditaduras comunistas, ufanizavam as própria democracia que tentaram clonar no Brasil com a implantação forçada do bipartidarismo[i] e, ao mesmo tempo, apoiavam e subsidiavam financeiramente ditaduras capitalistas.
Em 1979 o Estado brasileiro, ainda influenciado pelos militares, que queriam deixar, mas não perder o poder, através de um congresso formado por deputados irregularmente eleitos, senadores apelidados de biônicos por serem nomeados, concebeu a lei da anistia cognominada de ampla, geral e irrestrita que, na verdade não passou de um autoindulto que os militares e mentores do regime concederam a sim mesmos”.(TEIXEIRA, Rosana Carvalho Barboza. As repercussões jurídicas da ADPF 153. Disponível em https://jus.com.br/artigos/48253/as-repercussoes-juridicas-da-adpf-153, aceso em 13 de setembro de 2021.
[6] Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.[..].
[7] A arguição foi feita pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Associação dos Juízes para a Democracia, pelo Centro de Justiça e Direito Internacional – CEJIL, pela Associação Brasileira de Anistiados Políticos – APAP e pela Associação Democrática Nacional de Militares.
[8] Acórdão da ADPF n. 153 – DF, Rel. Min. Eros Grau, disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960, julgado em 29 de abril de 2010.
[9] O relator foi acompanhado pelos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes y Carmen Lúcia, deles divergindo os Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, A presidência esteve a cargo do Ministro Cezar Peluso.
[10] Recurso Extraordinário n. 165.438, Rel. Min. Carlos Velloso (2004).
[11] A crise do petróleo de 1973, o recrudescimento da inflação, a recessão econômica, os protestos de operários, estudantes, religiosos, intelectuais e profissionais liberais, assim como a pressão externa do Governo norte-americano na gestão de Jimmy Carter, que a partir de 1977 iniciou a política de direitos humanos.
[12] A democracia no Brasil teve testes importantes desde 1986 até 2010, passando pela morte de Tancredo Neves antes de tomar posse, sendo substituído por seu vice-presidente, José Sarney, como pelo pedido de impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello. Após esse período, foi novamente colocada em teste com o processo de impeachment da Presidente Dilma Roussef no ano de 2016, e atualmente se debate com a crise institucional provocada pelo Presidente Jair Bolsonaro.
[13] NETO, Manoel Jorge e Silva. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009, p. 145.
[14] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…] XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
[15] Art. 5º, incisos XLI, XLII, XLIII e XLIV.
[16] Por força do Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002.
[17] Homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de população, aprisionamento em violação às normas fundamentais de direito internacional, tortura, agressão sexual de qualquer ordem, perseguição de grupos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, desaparecimento forçado, crimes de apartheid.
[18] Artigo 29. Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.
[19] Artigo 1º – Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.
[20] Artigo 2º – Cada Estado tomará medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição.
2. Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificação para a tortura.
[21] ARAGÃO, Adriele Priscila Sales e WAGNER, Daize Fernanda. A ADPF 153 e o Caso Herzog: Uma Justiça de Transição à Brasileira. Disponível em file:///C:/Users/Usuario/Downloads/8834-Texto%20do%20artigo-42907-2-10-20201217.pdf, acesso em 13 de setembro de 2021.
[22] A Comissão da Verdade, ao encerrar seus trabalhos apresentou as conclusões e fez recomendações, que consistem em 1) reconhecimento pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985); 2) determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais; 3) proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e judiciais de regresso contra agentes públicos autores de atos que geraram a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações dos direitos humanos; 4) proibição de realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964; 5) reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua das Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos; 6) modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos; 7) retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos; 8) retificação de informações na Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede Infoseg) e, de forma geral, nos registros públicos; 9) criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura; 10) desvinculação dos institutos médico legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis; 11) fortalecimento das Defensorias Públicas; 12) dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso; 13) instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário e nos órgãos a ele relacionados; 14) fortalecimento de Conselhos da Comunidade para acompanhamento dos estabelecimentos penais; 15) garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos humanos; 16) promoção de valores democráticos e dos direitos humanos na educação; 17) apoio à instituição e funcionamento de órgão de proteção e promoção dos direitos humanos; 18) revogação da Lei de Segurança Nacional; 19) aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado; 20) desmilitarização das polícias militares estaduais; 21) extinção da Justiça Militar estadual; 22) exclusão de civis da Jurisdição da Justiça Militar federal; 23) supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades; 24) alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão; 25) introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal; 26) estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV; 27) prosseguimento das atividades voltadas à locallização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos; 28) preservação da memória das graves violações de direitos humanos; 29) prosseguimento do fortalecimento da política de localização e abertura de arquivos da ditadura militar. RELATÓRIO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE de 10 de dezembro de 2014, disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/, acesso em 13 de setembro de 2021.
[23] Cfe. se pode observar no caso de Iara Iavelberg, em relação à qual a versão oficial apresentada ao Departamento de Estado norte-americano é diversa da real ((https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/18/iara-iavelberg-morte-ditadura-militar.htm, acesso em 18 de setembro de 2021).
[24] Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
[25] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[26] DURAN RIBERA, Willman Ruperto. La protección de los derechos fundamentales en la doctrina y jurisprudencia constitucional. Disponible en https://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-00122002000200006, aceso em 31 de agosto de 2021.
[27] “Criar e manter condições básicas para assegurar o desenvolvimento da vida do homem em liberdade, em condições compatíveis com a dignidade humana […] esta liberdade pressupõe seres humanos e cidadãos com capacidade e vontade para decidir por si mesmos sobre seus próprios assuntos e para colaborar responsavelmente na sociedade publicamente constituída como comunidade”. Trad. Livre.
[28] RABBI-BALDO, Renato Cabanilla. Leciones de teoría del derecho. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2. ed., 2019, p.. 74.
[29] “Ainda que existam embasamentos legislativos, jurisprudenciais ou doutrinários que defendam uma hierarquia de direitos, considero que esta tese desvia-se do dado fundamental – já antecipado – de que por trás de todas estas construções se eleva a pessoa humana, pelo que hierarquizar direitos, em última instância, é privilegiar certos “bens básicos” sobre outros, o que vem em detrimento do único destinatário de mencionada proteção”. Trad. Livre.
[30] Um dos exemplos é o Museu do Holocausto, situado em Berlim ao lado do Portão de Brandemburg. “A idéia de construção do memorial foi exigida pela primeira vez por Lea Rosh, em 1988, durante um debate sobre a perseguição dos judeus pela Alemanha nazista. Depois de um longo e veemente debate nacional, o Parlamento aprovou o projeto de Eiseman em 25 de junho de 1999. Como testemunho da responsabilidade histórica dos alemães, a atual coalizão de governo social-democrata e verde, que tinha assumido o poder no ano anterior, decidiu ligar o monumento ao novo bairro do Parlamento e do governo que surgia em Berlim, para onde os trabalhos legislativos seriam transferidos oficialmente de Bonn em setembro de 1999.” (Alemanha constrói Museu do Holocausto. Disponível em https://www.dw.com/pt-br/alemanha-constr%C3%B3i-museu-do-holocausto/a-313792. acesso em 13 de setembro de 2021).