CRIME DE COLARINHO BRANCO AO VIVO: O PODER JUDICIÁRIO NA MÍDIA OU A MÍDIA COMO PODER JUDICIÁRIO
INTRODUÇÃO:
O tema abordado no presente artigo é a espetacularização, por parte da mídia, dos crimes de colarinho branco. Neste âmbito, será enfrentado o problema da formação do senso comum a partir do discurso midiático no tocante à punição dos crimes de colarinho branco. Ao final, verificar-se-á como o Poder Judiciário atua e reage a grande pressão popular fomentada pela mídia sensacionalista.
CRIMES DE COLARINHO – A DESCOBERTA POR SUTHERLAND:
Qualquer discussão acadêmica acerca dos crimes de colarinho branco passa por Edwin Hardin Sutherland, por suas obras, principalmente pela mais conhecida delas: White Collar Crime, publicada pela primeira vez em 1949.
O conceituado sociólogo americano, adepto do interacionismo simbólico, é tido como um dos mais influentes criminólogos do século XX, a ponto de ser dito, por Hermann Mannheim, que, caso houvesse um prêmio Nobel de Criminologia, Sutherland seria um dos candidatos mais credenciados a recebê-lo1. Já Fernando Álvarez-Uría, autor do prólogo da versão traduzida de White Collar Crime para o espanhol, intitulada El Delito De Cuello Blanco, crava Sutherland como o sociólogo do delito mais influente do século XX2.
A expressão White Collar Crime foi criada pelo autor citado no final dos anos 30, sendo citada a primeira a primeira vez em seu discurso proferida na American Sociological Society. Após a publicação de alguns artigos a respeito do assunto, em 1949 Sutherland publicou a sua obra mais famosa, aquela mais estudada e debatida até os dias atuais em toda a comunidade jurídica internacional e que ainda é a obra de referência quando se estudam os crimes praticados pelos mais abastados. O livre se chama, como não poderia deixar de ser, White Collar Crime.
Sutherland traz uma definição a do que é um delito de colarinho branco a partir de uma perspectiva subjetivo-profissional:
[…] El delito de “cuello blanco” puede definirse, aproximadamente, como un delito cometido por una persona de respeitabilidad y status social alto en el curso de su ocupación. Consecuentemente, excluy muchos delitos de la clase social alta, como la mayoría de sus asesinatos, adultério, intoxicación, etc., ya que éstos no son generalmente parte de sus procedimientos ocupacionales3.
Então, um delito de colarinho branco é aquele cometido por pessoa de posição social alta no exercício de suas atribuições profissionais. Até os dias atuais este é o conceito utilizado por quem discute esta espécie de crime, podendo haver algumas críticas, mas não houve quem conseguisse superá-lo, até porque poucos tentaram. Marshall Clinard e Richard Quinney, por exemplo, sugeriram tão-somente a substituição do termo, no caso deles para “crime corporativo”4, como se o termo influenciasse de alguma maneira.
A pesquisa do autor que resultou na publicação do livro consistiu na análise das condutas de setenta gigantes empresas dos Estados Unidos, excluindo-se as empresas públicas e aquelas que prestam serviço público. Utilizou como fonte as informações obtidas em tribunais e em comissões administrativas. Após analisar as condutas das empresas, conclui que há mais crimes de colarinho branco do que demonstram as estatísticas oficiais e que o praticante de crime de colarinho branco não se considera um delinquente, pois não se enquadra naquele estereótipo tradicional de infratores, ou, em outras palavras, nos três “pés” de Heleno Fragoso: prostituta, pobre e preto.
Pode-se afirma pestanejar que Sutherland revolucionou. Revolucionou porque demonstrou que a conduta criminal não faz parte somente da vida dos pobres, demonstrou que os “engravatados” não são as vítimas, pois cometem crimes de igual maneira, sendo que tais crimes são os mais danosos. Então, o autor merece ser estudado e saudado por ter aberto uma caixa de pandora.
CRIMES DE COLARINHO – A REAFIRMAÇÃO PELA CRIMINOLOGIA CRÍTICA:
Passaram-se décadas até que nos anos 80 o novo paradigma criminológico intitulado Criminologia Crítica revisitou o assunto. Tal paradigma se desenvolveu a partir da década de 60 do século XX, mas apesar de ser a vertente criminológica mais estudada na academia, há grande acúmulo de saber criminológico anterior a ela.
A Criminologia dita crítica, também chamada de radical, desenvolveu-se a partir da década de sessenta do século passado, tendo sua origem nas obras ‘Punição e Estrutura Social’, dos autores Georg Rusche e Otto Kirchheimer5, recebendo os influxos da Escola de Frankfurt, e ‘Vigiar e Punir’, de Michel Foucault6. Chamada à época “nova criminologia”, começou a ser estudada nos Estados Unidos e na Inglaterra e, após, irradiou-se por toda a Europa.
Há, em especial, um filósofo que calca o pensamento desta vertente criminológica, Karl Marx7. Esta é conceituada da seguinte forma, nas palavras de Morais da Rosa:
A Criminologia Crítica, ao invés de se centrar na figura/estereótipo do binômio do casal criminoso/crime, passou a olhar para aquém e além dele: percebeu que o indivíduo dito criminoso encontra-se necessariamente inserido em um contexto social, propenso, portanto à estigmatização e etiquetamento. Observou o discurso da legitimação/ exclusão dos indivíduos, percebendo a maneira pela qual o sistema repressivo é construído/forjado. Este sistema, com seus discursos hegemônicos de paz e ordem social, com maquilagem, escamoteia o modelo de sociedade excludente que sustenta/legitima8.
Portanto, a “nova” Criminologia, sob o enfoque macrossociológico, analisando os sistemas penais vigentes, verifica as condições estruturais e funcionais que, na sociedade capitalista, originam o fenômeno do desvio, distinguindo claramente e criticando a diferenciação que existe no tratamento das condutas das classes menos favorecidas e daquelas praticadas pelos detentores do capital, do poder, inclusive a criminalidade de colarinho branco, objeto do presente estudo9.
Verifica-se, assim, que o ponto alto da Criminologia Crítica consiste na demonstração de que o sistema penal é seletivo e que tal seleção é umbilicalmente ligada com a dominação classista própria das sociedades capitalistas contemporâneas. Trocando em miúdos, pode-se dizer que se verificou que os clientes das prisões, os criminalizados, são sempre os mesmos, os excluídos, enquanto os mais abastados, apesar de também cometerem crimes, não são criminalizados, ficam impunes e compondo a denominada cifra negra. Reside aqui uma grande ligação entre os postulados trazidos por Sutherland e os ensinamentos da vertente criminológica. Apesar de tal entrelaçamento, a Criminologia Crítica vai mais fundo nas razões dessa desigualdade, afirmando que o sistema penal é mero reprodutor da desigualdade existente nas sociedades capitalistas, a qual privilegia os detentores do capital, e que tal reprodução ocorre em três momentos: na produção das normas, dita criminalização primária; na posterior aplicação das normas, chamada de criminalização secundária; na execução das penas ou das medidas de segurança10.
Então derrubam-se, ao menos no meio acadêmico, pois no senso comum o positivismo continua hegemônico, os preceitos da criminologia de vertente etiológica, pois mostra-se que o sistema penal tem como clientes os pobres, não porque estes possuem maior tendência a cometer crimes, e sim porque estes são os que efetivamente são perseguidos e etiquetados, pois tal situação é cômoda para os detentores do poder.
Como a Criminologia Crítica bate muito na falsa igualdade dos indivíduos perante o Direito Penal, falando repetidamente em imunidade penal dos detentores do poder, pensa-se que há risco de que se proceda uma interpretação errônea de suas premissas, no sentido de se pensar que tal face criminológica anseia punição, pena privativa de liberdade, para os mais abastados que cometerem crimes, especialmente de colarinho branco. E não é esse o pensamento crítico, pois este informa que o véu da prisão caiu, ou seja, esta não encontra mais legitimidade diante do fracasso de suas missões declaradas e pensa em redução, alguns em abolição, do cárcere como pena. Apesar de não pretender que seja aplicada pena de prisão para os criminosos do colarinho branco, pode-se dizer que a denúncia feita pelos críticos contribuiu, e muito, para que leis combatendo a criminalidade das classes dominantes fossem criadas, ampliando-se os bens jurídicos tutelados, ao menos pela lei, pelo direito penal.
É interessante expor que os críticos veem uma forma de solucionar a questão da criminalidade: a alteração radical da estrutura da sociedade com a “superação” do capitalismo, com a implantação de uma sociedade socialista, conforme pensa Baratta:
A superação do direito desigual burguês pode ocorrer, portanto, somente em uma fase mais avançada da sociedade socialista, na qual o sistema da distribuição será regulado não mais pela lei do valor, não mais pela quantidade de trabalho prestado, mas pela necessidade individual11.
Pensam, portanto, em reduzir a desigualdade por meio da implantação do socialismo e, assim, poder diminuir ou até mesmo abrir mão do direito penal e da prisão, por entender que a função oculta deste ramo do direito é a de reproduzir as relações de desigualdade, de exploração próprias de uma sociedade capitalista.
A PUNIÇÃO DOS CRIMES DE COLARINHO BRANCO E A MÍDIA:
Nos dias atuais, o crime de corrupção, mormente o de corrupção, é colocado como o grande problema a ser perseguido. Inclusive, as instituições públicas elegeram o combate ao crime organizado, à corrupção, como suas principais metas, como se nota na leitura dos projetos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI – desenvolvido pelo Ministério da Justiça12.
Desde que os indivíduos começaram a se agrupar em sociedades imputou-se a alguns o rótulo de inimigos; seriam os maus, que colocavam a vida dos bons em risco. Leandro Ayres França tratou do assunto com os seguintes dizeres:
De modo ordinário, sempre foi possível identificar em todo agrupamento social a existência de um indivíduo ou de um grupo de pessoas com uma característica peculiar que os classificava como inimigos. Em sua maioria, os inimigos eram reconhecidos como aldeias, clãs, reinos, nações, que, em decorrência de crença, poder ou interesses variados, representavam uma ameaça a uma determinada sociedade13.
Facilmente pode-se vislumbrar alguns inimigos que surgiram nas últimas décadas. Com o tempo, alguns deixaram de ser vistos como efetivos problemas das sociedades, enquanto outros ainda são rotulados desta maneira. Exemplos: judeus, palestinos, israelitas, capitalistas, comunistas, terroristas, traficantes, ocidentais, orientais. Algumas vezes, imputa-se a uma determinada pessoa o rótulo de grande inimigo, como foi o caso de Muammar Qathafi, Yasser Arafat, Saddam Hussein, Osama Bin Laden. Estes indivíduos são, geralmente, os chefes dos grupos perseguidos.
Repara-se a existência da dicotomia entre bem e mal, entre os sujeitos que praticam delitos, os criminosos, e os não-desviantes. Baratta bem destava:
O delito é um dano para a sociedade. O delinquente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem14.
Então, o que delinque é o inimigo. Mas nem todos que cometem crimes são vistos da mesma forma, pois a população elege, de tempos em tempos, um crime para ser aquele da vez, aquele que é o responsável por todas as mazelas sociais e que, de fato, prejudica toda a vida em sociedade. Em outras palavras: há um grau de reprovabilidade social em relação aos crimes, que não permanece estático ao longo dos anos e sim se renova, muda de intensidade. E quem fomenta, quem constrói a imagem do criminoso verdadeiramente nocivo é a mídia, os meios de comunicação, que atiçam os sentimentos do povo, conforme destaca Garapon:
Os meios de comunicação, que são o instrumento da indignação e da cólera públicas, podem acelerar a invasão da democracia pela emoção, propagar uma sensação de medo e de vitimização e introduzir de novo no coração do individualismo moderno o mecanismo do bode expiatório que se acreditava reservado aos tempos revoltos15.
O espetáculo midiático tem como objetivo principal o comercial. O sangue exposto na tela de televisão e na capa do jornal e o furo jornalístico, instauram o medo nos espectadores e faz o senso comum clamar por segurança e punição daqueles que possuem o estereótipo do “criminoso”. Assim escreveu Alexandre Morais da Rosa:
De outra face, a força da mídia promove, com objetivos comerciais e outros nem tanto, a vivacidade do espetáculo ‘violência’, capaz de instalar a ‘cultura do pânico’, fomentador do discurso da ‘Defesa Social’ e combustível inflamável para aferrolhar o desalento constitutivo do sujeito clivado com a ‘promessa de segurança’, enfim, de realimentar os ‘estereótipos’ do crime e criminoso, mote dos discursos da ‘Lei e Ordem’16.
Nos últimos tempos, elegeram-se as drogas e o terrorismo como os grandes problemas e hoje fala-se muito na corrupção, conforme já alinhavado.
Destaca-se que a guerra as drogas, a caça ao inimigo como sendo o traficante e, em alguns momentos, o usuário fracassou, não surtindo os efeitos prometidos. No lugar disso, um sem número de vidas e de famílias foram destruídas. Despejou-se sangue, afetou-se direitos individuais e humanos e permaneceu-se no mesmo trilho; a mudança a salvação prometida, não foi alcançada nem de longe.
Já a mídia deitou e rolou, garantido altos índices de audiência. Programas policiais apresentados por discípulos de Alborghetti e de Gil Gomes fazem sucesso até os dias de hoje. A fórmula é simples: uma reportagem sobre prisão de traficantes seguida de um discurso odioso, que lembra a todos os telespectadores que são aqueles presos os responsáveis por todos os problemas sociais. Nos comerciais, propagandas de produtos relacionados à segurança. Em tais programas, afirma-se que “bandido bom é bandido morto”, que se o cidadão “está com pena que leve o bandido para casa” e que os direitos humanos não devem ser aplicados aos criminosos. Aplica-se, ainda, linguagem vulgar para se referir aos que estão sendo presos: “vagabundos” é a expressão preferida.
A guerra contra o terror, iniciada pelas mãos de George Bush após os atentados ocorridos nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, também fracassou, servindo somente para afetar a soberania do Iraque.
Então, surge o corrupto como o novo inimigo a ser perseguido. Recentemente, alguns episódios renderam grande audiência para as emissoras de televisão e para os periódicos. Todos pararam para assistir, no ano de 2005, os desdobramentos da decretação da prisão preventiva de Paulo Maluf. Mais recentemente, todo o julgamento da Ação Penal nº 470, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, apelidada de “mensalão”, também atraiu a mídia e o povo. Desde os dias anteriores ao julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, até os posteriores a este, não houve um dia sequer que o assunto não tenha sido contemplado pela mídia. O povo, eufórico, garantiu a audiência. Ecoou no senso comum pedido de punição, pois projetaram-se naqueles selecionados de colarinho branco todos os males da sociedade.
Nos dias atuais, inúmeros políticos respondem a processos judiciais, apesar de ainda serem escassas as condenações com trânsito em julgado e a efetivação de prisões destes. Entretanto, como já se consignou, o Brasil adentrou em uma, ao menos suposta, democracia, há poucos anos e, antes dela, mais difícil era chegar ao conhecimento dos órgãos responsáveis as notícias acerca de atos ímprobos.
Em um Estado democrático, sem censura da imprensa, esta promove investigações e procura por fatos que possam erguer os índices de audiência. Some-se a isto o fato de a população estar mais informada e, assim, cobra das autoridades a persecução e a punição.
Chega-se ao seguinte quadro: a democratização do país propiciou que os escândalos cheguem à mídia, cheguem ao conhecimento da população. Os órgãos responsáveis pelo controle, como a polícia, o Ministério Público e os Tribunais de Contas gozam de independência, podendo livremente atuar contra detentores do poder. O Poder Judiciário, da mesma forma17. Já a mídia encontra-se livre e quanto mais angariar fatos polêmicos e noticiar supostos casos de corrupção, mais terá audiência e, consequentemente, maior será sua arrecadação com publicidade.
Portanto, um inimigo surge, com grande fomento pela mídia. O corrupto. É ele o responsável por todos os males da sociedade, como já visto. ‘Deve ser punido com rigor’, é o sentimento popular.
Entretanto, o corrupto é sempre o adversário político e jamais o companheiro, como bem anota Maria Lúcia Karam:
Este histérico e irracional combate à corrupção, reintroduzindo o pior do autoritarismo que mancha a história de generosas lutas e importantes conquistas da esquerda, se faz revitalizador da hipócrita prática de trabalhar com dois pesos e duas medidas (o furor persecutório volta-se apenas contra adversários políticos, eventuais comportamentos não muito honestos de companheiros ou aliados sempre sendo compreendidos e justificados) e do acético princípio de fins que justificam os meios, a incentivar o rompimento com históricas conquistas da civilização, com imprescindíveis garantias das liberdades com, com princípios fundamentais do Estado de Direito18.
A corrupção surge, assim, como um produto altamente atraente, eis uma reportagem mostrando caso de envolvimento com a corrupção tem grande apelo por parte dos telespectadores e, como já se disse, quanto maior o peso do envolvido no caso, melhor. O interessante é ver o outro, que até então desfrutava de uma vida com certas comodidades, arrastando-se pelos corredores dos tribunais, envolvido em situações embaraçosas. É certo que os crimes que envolvem sangue também são promissores em se tratando de audiência, havendo uma enormidade de programas sensacionalistas destinados a este tipo de delito. Entretanto, a corrupção em sentido lato também é passível de prender a atenção do público.
E como o Poder Judiciário reage a tal pressão popular, ecoada na mídia, no sentido de que se puna os envolvidos em corrupção, mesmo que para tanto seja necessário modificar entendimentos, vilipendiar direitos constitucionais?
O PODER JUDICIÁRIO COMO MÍDIA OU A MÍDIA COMO PODER JUDICIÁRIO:
O Direito pátrio traz o princípio da presunção de inocência positivado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República vigente19. Apesar do texto constitucional citado, é forçoso reconhecer com Marilena Chauí que a “mídia produz culpas e condena sumariamente20”, violando tal princípio.
Não se trata de uma atuação por parte da mídia que seja capaz de influenciar um tribunal a tomar certa decisão (trial by media), mas da realização do próprio julgamento por meio da mídia21 22.
Esta atuação violadora, verdadeiramente condenatória, tem força ímpar. A história demonstra os seus reflexos na vida política do país, tendo razão João Paulo Ávila Pontes ao afirmar que “o cumprimento da sentença jornalística tem efeito imediato e para toda a nação”23. Além disso, o Poder Judiciário midiático não respeita Direitos e Garantias Fundamentais ou princípios do Direito, pois afastam-se todos em prol da “liberdade de imprensa” ou “liberdade de informação”. Inclusive, todas estas garantias são vistas, pelas agências midiáticas, como um verdadeiro estorvo, como analisa Nilo Batista:
[…] Tensões graves se instauram entre o delito-notícia, que reclama imperativamente a pena-notícia, diante do devido processo legal (apresentado como um estorvo), da plenitude de defesa (o locus da malícia e da indiferença), da presunção de inocência (imagine-se num flagrante gravado pela câmera!) e outras garantias do Estado democrático de direito, que só liberarão as mãos do verdugo quando o delito-processo alcançar o nível de delito-sentença (= pena-notícia). Muitas vezes essas tensões são resolvidas por alguns operadores – advogados, promotores ou juízes mais fracos e sensíveis às tentações da boa imagem – mediante flexibilização e cortes nas garantias que distanciam o delito-notícia da pena-notícia. No processo de minimização do Poder Judiciário, o neoliberalismo se vale de instrumento análogo aos empregados na sua obra econômico-social24.
Este problema trazido por Nilo Batista na parte final da citação adrede mencionada é de suma importância por representar um grande perigo. Juízes preocupados com a repercussão de suas decisões na mídia podem não só flexibilizar, como passar por cima de garantias, para não deixarem de condenar e, como consequência, serem vistos com maus olhos pela sociedade25. Exemplo prático ocorreu na Ação Penal nº 470, conhecida como o caso do “mensalão”, em que o relator, Ministro Joaquim Barbosa, atuou de maneira severa26, condenando a qualquer custo os principais agentes políticos envolvidos. Já o revisor, Ministro Ricardo Lewandowski, votou em diversas oportunidades de maneira divergente, atribuindo absolvições por alguns crimes e penas mais baixas. O resultado: a mídia construiu a imagem do primeiro como um Ministro que está ao lado do povo e do segundo como um vilão, que não anseia punição dos criminosos de colarinho branco. E transparece que o Ministro Relator estava preocupado com sua imagem perante o público, o que não é interessante, eis que deve-se guardar a devida distância, para não se julgar influenciado pelos interesses da mídia27. Poder Judiciário e mídia não devem se entrelaçar.
Não se pode, sob nenhum aspecto, rotular os magistrados que garantem os direitos constitucionais e legais de fracos, e sim demonstrar que os que desprezam tais direitos estão agindo ao arrepio da lei, por mais impopular que a decisão possa parecer, levando-se em consideração o anseio de punição já discutido. Além da mídia julgar o caso, ela também julga os juízes do caso.
Enfatiza-se que a grande dificuldade está em se colocar a mídia como mídia e mais nada e o Poder Judiciário como órgão competente e independente para julgar, no caso da seara criminal, os delitos ocorridos e perseguidos pelo Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Edwind Hardin Sutherland revolucionou! Foi o primeiro a chamar atenção para os crimes cometidos pelos mais abastados, pelos que compõem a elite da camada social, denominando estes delitos de “crimes de colarinho branco”. A partir de seus estudos, deixou-se de pensar que somente os clientes do sistema penal são os criminosos.
Passados longos anos sem novidades a respeito do tema, sobreveio o paradigma criminológico intitulado ‘Criminologia Crítica’, a qual, sob o enfoque macrossociológico, verificou o contexto social em que estão inseridos os clientes do sistema penal. Neste aspecto, a Criminologia Crítica informou que o sistema penal é seletivo e que os selecionados são os menos favorecidos, os pobres e negros, replicando-se a dominação classista própria das sociedades capitalistas contemporâneas. Além de se selecionar os autores de crimes de acordo com seu status social, também algumas infrações são escolhidas, como os crimes contra o patrimônio e o tráfico de drogas. Mais uma vez restou estabelecido que o Direito Penal é falsamente igualitário, tendo em vista que a elite não é punida e sequer perseguida criminalmente. Registra-se que os adeptos da Criminologia Crítica não anseiam por punição severa dos criminosos de colarinho branco, sendo tal interpretação um equívoco por parte de alguns membros da esquerda, conforme denunciado por Maria Lúcia Karam.
Assim, pode-se consignar que há íntima relação entre os estudos de Sutherland e as principais balizas de Criminologia Crítica, tendo em vista que ambos enfatizam o fato de que os detentores de poder cometem uma série de crimes e não são punidos. Falam em total imunidade destes.
A sociedade debate o assunto, pedindo punição aos corruptos e falando exacerbadamente em punição. Seria esta imunidade dos corruptos, aliada à impunidade, a responsável por todas as mazelas de nosso país. A falta de saúde, educação, moradia, segurança, seriam consequências deste crime.
Então, o corrupto surge como o grande inimigo atualmente.
Esta necessidade de se ter um inimigo é visível desde tempos remotos, de modo que se pode concluir que ao se formarem os agrupamentos sociais também nasceram os inimigos destes.
Nos últimos tempos, conclui-se que se direcionou o pensamento da coletividade no sentido de que as drogas constituíam o grande problema da juventude e da sociedade. Como consequência, declarou-se em todos os lugares do mundo guerra às drogas.
Agora, conforme já salientado, ecoa no senso comum o pensamento de que o corrupto é o novo inimigo, apesar de estar claro que “todos somos corruptos”. O gozo advém da situação embaraçosa alheia, do “outro”.
E é a mídia a grande responsável pela construção da imagem do inimigo comum.
Toda esta construção é acentuada em razão da evolução da internet. Agora, a notícia é rápida, não tendo limites temporais ou espaciais. Todos estão por dentro de todos os acontecimentos, o que gera maior recebimento de informações. A juventude atual, a primeira formada depois da redemocratização do Brasil e interligada pelas redes sociais, recebe e transmite grande carga de informação e a processa de forma que é gerada grande insatisfação, tendo em vista que a saúde, a educação, a segurança, entre outros, não funcionam adequadamente.
É interessante também reparar e consignar que a carga de informação recebida aumentou e muito com o advento da internet. Entretanto, o pensamento e a reflexão crítica não estão na ordem do dia desta nova geração, o que faz com que a mídia espetacular e sensacionalista tenha mais facilidade em inculcar determinada posição.
Tudo isto reflete no Poder Judiciário. Não há como este deixar de lado a pressão popular e o verdadeiro julgamento realizado pela mídia, que condena. Não se pode admitir que os magistrados flexibilizem direitos e garantias para que possam condenar denunciados por crime de corrupção, ou qualquer outro, para não serem vistos com maus olhos pela sociedade. A voz da rua não pode adentrar nos tribunais pátrios, pois devem os julgadores ficar adstritos ao Direito. Repudie-se a espetacularização da justiça, o populismo.
NOTAS DE RODAPÉ:
1 MANHEIM, 1984, p. 722.
2 SUTHERLAND, 1999, p. 11.
3 SUTHERLAND, 1999, p. 65.
4 COLEMAN, 2005, p. 7.
5 Na obra, os autores demonstram com clareza como passamos de uma fase em que a pena recaía sobre o corpo, passando à disciplina da mão de obra, voltada exclusivamente para os interesses mercantis.
6 Vera Malaguti Batista (2011) anota que embora Foucault cite pouco Rusche e Kirchheimer, uma leitura atenta da obra do francês nos mostra a influência de um sobre o outro.
7 É importante destacar a anotação de Zaffaroni (1991, p. 51) no sentido de que Marx não analisou, com
profundidade, o sistema penal, apesar de fixar que é necessário deslegitimar o sistema penal, eis que faz parte da superestrutura ideológica. Schecaira (2011, p. 345-346) bem resume o entendimento de Marx acerca do fenômeno criminal: “[…] Segundo afirmação de Marx, com sua proverbial ironia, o crime produziria professores, livros, todo um sistema de controle social – juízes, policiais, promotores, jurados -, métodos de tortura; teria feito evoluir procedimentos técnicos, datiloscópicos, químicos e físicos, para detectar falsificações, favoreceria, assim, fabricantes e artesões, rompendo a monotonia da vida burguesa; enfim, daria, desta maneira, um estímulo às forças produtivas. Vale dizer, o centro das atenções do marxismo em relação à criminalidade é o seu caráter de crítica ao funcionalismo do pensamento criminal. A lei nada mais é que um sistema (também designado superestrutura) dependente do sistema de produção (infraestrutura ou base econômica). O direito, ao contrário do que afirmam os funcionalistas, não é uma ciência, mas sim uma ideologia que só será entendida mediante uma análise sistêmica denominada método histórico-dialético. O homem, por sua vez, não tem o livre arbítrio que lhe atribuem, pois está submetido a uma vetor econômico que lhe é insuperável e acaba por produzir não só o crime em particular, mas também a criminalidade como um fenômeno mais global, com as feições patrimoniais e econômicas que todos conhecem”.
8 ROSA, 2005, p. 41.
9 ANDRADE, V. 2003b, p. 217.
10 CASTILHO, 2002, p. 61.
11 BARATA, 2002, p. 164.
12 BRASIL, 2007.
13 FRANÇA, 2012, p. 6.
14 BARATTA, 2002, p. 42.
15 GARAPON, 1997, p. 94.
16 ROSA, 2006, p. 204.
17 Não se descarta que há interferência política em todos os órgãos citados. Entretanto, não há controle e sim intervenções esporádicas.
18 KARAM, 1996, p. 80
19 Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
20 CHAUÍ, 2012, p. 1.
21 BATISTA, N., 2002, p. 283.
22 Marcelo Semer (2011) anota que a maior “perversão” está no fato da mídia se afirmar como Poder Judiciário.
23 PONTES, 2010, p. 155.
24 BATISTA, N., 2002, p. 273-274.
25 Alexandre Morais da Rosa fala em “Juízes Midiáticos” e revela que estes vilipendiam as garantias
advindas do Direito: […] A ‘moral vedete’ surge nos discursos moralizantes e normatizadores, enunciados pelos ‘Juízes Midiáticos’, nos quais as garantias penais e processuais são francadamente vilipendiadas, mas sempre surge um acusador juntando a ‘fita do programa’ aos autos ou a exibindo, com certo orgulho, no plenário do Júri, quando deveria democraticamente impedir tais violações. (ROSA, 2006, p. 228-229)
26 Em entrevista, Rubens Casara (2012) consignou: Na atuação do ministro Joaquim Barbosa, que vem dos quadros do Ministério Público, órgão constitucionalmente encarregado de formular hipóteses e produzir provas que a confirme, muitos enxergam essa tendência inquisitorial.
27 Há setores da esquerda que pensam tal como explanado. Maria Lúcia Karam (1996, p. 80) consignou que: […] amplos setores da esquerda aderem à propagandeada idéia que, em perigosa distorção do poder do Poder Judiciário, constrói a imagem do bom magistrado a partir do perfil de condenadores implacáveis e severos. Assim, se entusiasmando com a perspectiva de ver estes “bons magistrados” impondo rigorosas penas a réus enriquecidos (só por isso vistos como poderosos) e apropriando-se de um generalizado e inconsequente clamor contra a impunidade, estes amplos setores da esquerda foram tomados por um desenfreado furor persecutório, centralizando seu discurso em um histérico e irracional combate à corrupção […].’
REFERÊNCIAS:
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. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003b.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro: Revan, n. 12, 2002.
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
BRASIL. Ministério da Justiça. Pronasci. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJF4F53AB1PTBRNN.htm>. c2007.
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CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional: Lei nº 7.492, de 16/6/86. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
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