O famigerado direito ao silêncio, positivado no artigo 5º, LXIII, da Carta Maior [1] apresenta-se como uma das decorrências do princípio nemo tenetur se detegere. Nas palavras de Maria Elizabeth Queijo [2], o aludido princípio “tem sido considerado direito fundamental do cidadão e, mais especificamente, do acusado. Cuida-se do direito à não auto-incriminação, que assegura esfera de liberdade ao indivíduo, oponível ao Estado, que não se resume ao direito ao silêncio”.
Superada a breve elucidação contextual do princípio preconizado pelo artigo 8º, II, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos [3], surge o seguinte questionamento: a conduta do réu de opor-se fornecer ao juízo seus dados bancários existentes no exterior constitui crime de desobediência?
Aury Lopes Jr., diga-se, de maneira pontualíssima, leciona que o “direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo a qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado” [4] (grifo do autor).
Na mesma esteira, Alberto Zacharias Toron [5], de modo clínico, realça que a guarita contra a autoincriminação significa, num todo, “a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma”.
Em suma, o direito à não autoincriminação é um direito individual, humano e fundamental, de observância inescusável no processo penal. Não é exequível compelir o ser humano a agir contra sua própria vontade, o que, caso acontecesse na prática, violaria por completo a integridade mental e moral do réu.
Na hipótese, a negativa do réu em fornecer ao juízo seus dados bancários estabelecidos no exterior, não constitui a conduta típica insculpida no artigo 330 do Código Penal, haja vista que, se assim fosse, estar-se-ia transgredindo a natureza humana e, portanto, a dignidade do acusado, transferindo-o o ônus que compete integralmente ao Estado-acusação, subvertendo a lógica do processo penal acusatório.
Ora, forçar o acusado a propiciar ao juízo seus dados sigilosos abre indiscutível margem para que se origine múltiplas consequências negativas, haja vista que, nesta etapa, o polo passivo da ação penal pode optar por manter-se em silêncio, confessar, autoincriminar-se ou não e, por fim, até mesmo mentir, com fundamento no princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Simplificando, ao preferir permanecer em silêncio e não se autoincriminar, o réu estará agindo no exercício regular de um cristalino direito constitucional, logo, não poderá o magistrado imputar ao acusado a prática do delito de desobediência, com fundamento no artigo 23, inciso III, do Código Penal [6].
Ademais, a Lei Processual também efetiva o direito ao silêncio em seu artigo 186 [7], tonificando que este não será manipulado juridicamente em desfavor do réu. No mesmo sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos seguintes precedentes: HC 79.589/DF [8], HC 73.035/DF [9], HC 79.244/DF [10], HC 101.909/MG [11] eHC 79.812/SP [11].
Sem mais delongas, é cristalino que o direito ao silêncio denota-se elemento inexorável que compõe a autodefesa do réu, decorrente do supracitado princípio nemo tenetur se detegere, que possui esteio legal tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA) como no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU).
Por derradeiro, é cediço que ao atribuir ao réu a prática do delito capitulado no artigo 330 do Código Penal, na hipótese de opor-se apresentar seus dados bancários estabelecidos no exterior, o magistrado estaria barganhando sua competência de autoridade no procedimento criminal, trocando-a, lamentavelmente, pela conveniência cinzelada no ranço inculcado por aquilo que mais se teme no cenário processual penal contemporâneo, isto é, o autoritarismo.
[1] LXIII — o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[2] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003.
[3] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm
[4] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 446.
[5] TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal: Questões Controvertidas e de Processamento do Writ. 2ª ed., revista atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais, 2018, p. 64.
[6] Artigo 23 — Não há crime quando o agente pratica o fato: III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (grigos do autor). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
[7] Artigo 186 — Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79.589/DF. Relator: MIN. OCTAVIO GALLOTTI. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1782940
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 73.035/DF. Relator: MIN. CARLOS VELLOSO. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1623524
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79.244/DF. Relator: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1759094
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 101.909/MG. Relator: MIN. AYRES BRITTO. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3810143
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79.812/SP. Relator: MIN. CELSO DE MELLO. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1794088
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-necessary | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary". |
viewed_cookie_policy | 11 months | The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data. |
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-functional | 11 months | The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional". |
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-performance | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance". |
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-analytics | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics". |
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-others | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other. |