A Lei 13.964/19 trouxe significativas mudanças na legislação penal e processual penal brasileira. Dentre as mais importantes alterações, destaca-se a possibilidade de realização de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), entre Ministério Público e investigado, nas infrações penais cometidas sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, cumprida uma série de outros requisitos objetivos e subjetivos, previstos no artigo 28-A do chamado Pacote Anticrime.
Em que pesem algumas polêmicas acerca de alguns de seus requisitos (em especial a necessidade de confissão), bem como discussões sobre de sua natureza e o momento processual adequado para sua realização, o novo instituto despenalizador foi visto como inovação legislativa bastante positiva, já que efetuou verdadeira desburocratização do processo penal através de uma “despenalização”, trazendo uma resposta estatal mais célere e ao mesmo tempo satisfazendo a vontade da vítima no que tange a eventual necessidade de reparação. Não se pode ignorar, ainda, que o novo instituto tem forte atuação na diminuição da superlotação nos presídios, canalizando as forças estatais para a prevenção e punição de crimes mais graves.
O que parece não ter sido previsto, no entanto, foram as consequências negativas que a materialização do Acordo de Não Persecução Penal poderia causar em futuras reformas legislativas, principalmente no que tange ao aumento da pena de alguns crimes já existentes e atribuição da pena em novos delitos. O legislador, ao criar novos tipos penais, ou elevar a pena de crimes já existentes, parece ter levado em conta requisito objetivo do ANPP (pena mínima inferior a 4 anos), fixando a pena mínima em 4 anos de reclusão quando destas alterações, de modo a impossibilitar a realização do acordo em crimes que entende ser de gravidade média/alta.
Na Lei 14.155/21, por exemplo, os crimes de furto mediante fraude e estelionato virtual (fraude eletrônica) tiveram suas penas aumentadas para 4 a 8 anos de reclusão. Considerando que as penas de furto e estelionato na modalidade simples têm pena mínima de 1 ano, nos parece evidente a preocupação do legislador em elevar a pena mínima em patamar superior àquele previsto como requisito objetivo para a realização do Acordo de Não Persecução Penal, justamente para inviabilizar a aplicação do novo instituto.
Os novos crimes em licitações, inseridos no Código Penal a partir da Lei 14.133/21 (Nova Lei de licitações e contratos administrativos), também sofreram significativo aumento de pena, prevendo a maioria deles uma pena de 4 a 8 anos de reclusão, de modo a impossibilitar o ANPP em quase todos os crimes licitatórios, demonstrando uma certa tendência nos novos parâmetros adotados pelo legislador.
Sem adentrar no mérito da razoabilidade o quantum da pena a ser aplicada para cada um destes crimes, que nos preocupa é que tal prática vire tendência legislativa populista, de forma a atender anseios meramente punitivistas, que não representam de fato a realidade fática social daquele tipo penal.
Tememos, portanto, uma desvirtuação do novo instituto, com base em falsos pressupostos, de modo a criar obstáculos desnecessários à aplicação do ANPP, em vez de trabalhar em seu aperfeiçoamento. As novas alterações legislativas, quando motivadas por ideias punitivistas, podem fazer com que o novo instituto perca parte de seu objeto, não cumprindo com as finalidades para qual foi constituído.
Propomos, assim, maior zelo com a política criminal adotada quando da instituição do Acordo de Não Persecução Penal, de forma a assegurar a devida motivação e razoabilidade na criação de novos tipos penais e alterações de pena para maior, para manutenção dos benefícios já alcançados com o novo instituto despenalizador e seu desenvolvimento.