I – Introdução:
A organização da vida em sociedade pressupõe a estruturação de instituições essenciais à vida em comum, alicerçadas em regras basilares de convivência, cujo acolhimento (e efetivação) em maior ou menor grau dos direitos fundamentais em Constituição formal é o termômetro que mede o nível de desenvolvimento social.
E é característica marcante de um Estado Democrático de Direito a proteção de certos bens jurídicos úteis para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano, como a vida, a integridade e saúde corporais, a honra, a liberdade individual, o patrimônio, a sexualidade, a família, a incolumidade, a paz, a fé e a administração públicas. À lesão real ou ameaçada de tais bens jurídicos contrapõe-se reações estatais consistentes em penas criminais ou as medidas de segurança1, isto como forma de preservar estes importantes bens.
E nos casos de delitos praticados por servidores públicos, para além da imposição da pena propriamente dita, considerada a tríplice função da pena, a sentença condenatória criminal pode acarretar diversas consequências, dentre as quais, o efeito extrapenal secundário específico da perda do cargo, função pública ou mandato eletivo, dês que presentes certos requisitos e motivação idônea declarados no édito condenatório, nos termos do art. 92, I, do CP.
Não é de hoje que a decretação da perda do cargo público (função ou mandato eletivo) como efeito extrapenal de condenação criminal suscita diversos questionamentos, como a definição de qual cargo viria a ser atingido pelo decreto de perda, se o exercido ao tempo do delito ou aquele novo cargo ocupado ao tempo da sentença penal condenatória, ou qualquer deles2, bem como se no caso de senadores ou deputados federais a perda do mandato eletivo decorreria da mera decretação pelo STF, ou se dependeria de requisito extra, como a deliberação pela Casa Legislativa respectiva3, em atenção ao disposto no art. 55, VI, da CF/88.
Outro questionamento que surge é no tocante ao alcance da decretação da perda do cargo público no caso de servidor ativo que, preenchendo os requisitos, ainda não requereu a passagem para a inatividade: a decretação da perda do cargo, em caso tal, impedirá o jubilamento e atingirá à aposentadoria?
Não são poucos os casos em que sentenças penais condenatórias veiculadoras de efeito extrapenal da perda do cargo público avançam por sobre o direito à aposentadoria, sob os mais diversos fundamentos. Ou, ainda, pedidos administrativos ou ações cíveis em que se pleiteia a aposentação são denegados sob o argumento de ser efeito decorrente da decretação da perda do cargo público em sentença penal condenatória.
Ora, é possível emprestar efeitos de automática cassação do direito à aposentadoria – e assim, denegar o pleito na órbita administrativa e judicial cível/previdenciária – em decorrência da perda do cargo efetivada posteriormente por ato de Chefe de Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) em atenção ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória que decreta a perda do cargo (art. 92, I, do CP)?
É sob a ótica desta última problematização que o presente artigo se desenvolverá, a fim de aquilatar quais as consequências jurídicas sobre o direito à aposentadoria quando ordenado o efeito extrapenal da perda do cargo público na hipótese de servidor ativo que, embora tenha reunido as condições, não solicitou a passagem para a inatividade remunerada e veio a ser surpreendido com sua exoneração ante ao cumprimento da ordem de encerramento do vínculo jurídico com a administração pública emanada de sentença penal condenatória transitada em julgado.
II – Natureza jurídica do cargo público e do direito à aposentadoria
A participação popular nos destinos de uma nação é direito-dever multidimensional consagrado em diversos diplomas internacionais, do que é exemplo o mecanismo previsto art. 25, “c”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos4, que preconiza: “Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: […] c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país“.
Daí ser o exercício de função pública estatal um importante meio convergente de acolhimento de diversas vontades e conveniências: é a forma pela qual o Estado soberano e seus entes ganham vida e existência no mundo real para o desempenho de suas funções típicas (executiva, legislativa e judicante), mediante o cometimento de atribuições e responsabilidade ao servidor5, e, de outro lado, representa razoável segurança financeira aos cidadãos investidos em cargos públicos ante a certeza do recebimento da contraprestação, razão de intenso frenesi no Brasil, vislumbrado nas acirradas disputas para ingresso em carreiras públicas, motivada, inclusive, pela estabilidade funcional que a Constituição outorga aos servidores.
E um dos efeitos do exercício do cargo público é o nascimento de relação jurídica previdenciária autônoma, consubstanciada, sobretudo no direito à aposentadoria (art. 40 da CF), que advém do decurso de tempo aliado à materialização de diversos comportamentos ativos pelo servidor (pagamento de contribuições, exercício ininterrupto do cargo, etc), cuja reiteração lhe empresta configuração no mundo jurídico em níveis diferentes, como o de expectativa de direito, direito adquirido e o de ato jurídico perfeito.
Daí se poder afirmar que dentro da linha natural de desdobramentos decorrentes da relação entre servidor e ente público, está a expectativa de que a extinção do vínculo entre o particular e administração pública se dê por causas normais, do que a aposentadoria é o principal expoente.
Isso porque, é inegável a importância do cargo público tanto para o particular que o exerce (obtém seu sustento e planejamento para a inatividade remunerada), quanto para a administração pública (que depende daquele para dar execução às funções típicas e atípicas que o Estado deve desempenhar), de modo que o sistema jurídico pátrio outorga especial proteção ao vínculo jurídico estabelecido entre o servidor e administração pública, cuja extinção produz efeitos que ultrapassam o mero interesse individual e subjetivo.
Basta pensarmos em situação em que um delegado de polícia de uma cidade pequena ou um agente de combate a endemias daquela mesma urbe venha a sofrer condenação criminal com a decretação da perda do cargo público. Para a pessoa natural ocupante do cargo, após anos de dedicação exclusiva às funções, será um incomensurável prejuízo, pois necessitará desenvolver novas capacidades, investir recursos na preparação, até encontrar outra atividade da qual tirará seu sustento. Mas a exoneração é também prejudicial à própria administração pública, que precisará realizar novo concurso, com os inconvenientes inerentes ao tempo necessário à finalização do certame e contratação de novos servidores (impugnação de edital, judicialização das etapas do concurso, desvio de função provisório, ou sobrecarga de outros servidores, etc, para dar conta da acumulação de serviço). Do mesmo modo, padecerá a coletividade, pois, no exemplo dado, não haverá delegado de polícia para presidir investigações e concluí-las ou agente de combate a endemias, expondo os munícipes à sensação de impunidade e à propagação de doenças.
Imagine-se, ainda, o “caos” em que se converteria o país caso a um só tempo todos os agentes políticos implicados na “Laja Jato” fossem condenados e tivessem prontamente efetivado o comando de perda do cargo de suas sentenças penais no mesmo dia. Para se ter uma ideia, na “lista da Lava Jato” chegou a constar um total de 63 deputados, 24 senadores, 10 governadores, e 20 prefeitos (alcaides estes só do estado de São Paulo)6. Exonerados todos eles a um só tempo (perda de mandato eletivo, seria o termo mais técnico), qual não seria a crise (ou alívio!!) institucional que se instalaria!
O exemplo invocado bem ilustra que a efetivação da perda do cargo por efeito extrapenal de sentença criminal, embora indiscutivelmente necessária para expurgar ímprobos e inescrupulosos agentes que se valem das funções para fins escusos, é sempre um ato drástico e com incontáveis reflexos, daí ser temática das mais sensíveis na República, a ponto de inclusive exigir-se fundamentação específica para a perda do cargo7, não sendo, pois, corolário automático da condenação8 (salvo no delito de tortura).
Por isso é que o sistema jurídico delineou e desejou que o afastamento do cargo público se operasse sempre no regime de normalidade (aposentadoria), de modo a permitir a execução do planejamento do civil investido das funções públicas e o planejamento do próprio ente público (concurso para nova contratação com tempo hábil, etc.), salvo, obviamente, casos excepcionais autorizadores de afastamento cautelar ou mesmo o corte do vínculo anormal, hipóteses positivadas em normas específicas.
E a perda do cargo público decretada em sentença penal condenatória é uma dessas hipóteses excepcionais, porquanto se opera de modo permanente e perpétuo em relação ao cargo ocupado ao tempo do crime, e nem mesmo a posterior reabilitação criminal poderia ensejar a reintegração àquele posto.
Não obstante, ante ao caráter contributivo e solidário do regime constitucional-previdenciário do art. 40 da Constituição Federal, da formação do vínculo servidor-administração (empregado-empregadora) nasce relação jurídica previdenciária autônoma, regida por princípios e regras próprias, e a perda do cargo público por efeito extrapenal de sentença criminal não tem o condão de fazer desaparecer o capital paralelo formado pelas contribuições adimplidas pelo servidor público ao longo de sua carreira.
Ao realizar o compulsório e reiterado pagamento de contribuições segundo seu regime jurídico previdenciário, o servidor qualifica-se como segurado perante a fazenda pública gestora do capital, de modo que, mesmo exonerado, continua credor da fazenda pública cometida da administração daquele fundo.
Assim, embora o gatilho impulsionador da aposentadoria decorra do vínculo oriundo do cargo público, o direito ao jubilamento é autônomo e seus efeitos se operam em órbita jurídica diversa do mero campo do direito administrativo regente da relação existente entre servidor e administração pública. O fim desta última relação em razão da perda do cargo público firmado em sentença penal não extingue os reflexos inerentes às contribuições realizadas, sob pena, inclusive, de enriquecimento indevido da fazenda pública.
III – A aposentadoria como direito adquirido: completado o ciclo de formação, infensa estará aos efeitos jurídicos de novas situações que atentem contra o núcleo essencial do direito adquirido à aposentação
O preenchimento e satisfação, no mundo fenomênico, das condições necessárias à passagem para a inatividade remunerada, tenham sido formalmente declarados ou não por ato administrativo ou judicial, outorga ao titular deste direito público subjetivo a proteção inerente à segurança jurídica, isto é, sua pretensão de aposentar-se reveste-se da imunidade decorrente do direito adquirido (art. 5º, XXXVI, da CF), de modo a obstar que circunstâncias ulteriores (nova lei ampliativa de prazo de contribuição, ou posterior exoneração do cargo, por exemplo) impeçam o gozo do direito previdenciário-constitucional da aposentação, seja pessoalmente e em vida pelo próprio contribuinte, seja por dependentes no post mortem (nem a morte suplanta os benefícios e contraprestações da conquista material e fática do direito à aposentadoria!!) materializado na pensão.
O que importa juridicamente é que, ao tempo do preenchimento dos requisitos da aposentação, esteja hígido e vigente o status jurídico de servidor público, ainda que apenas posteriormente seja a aposentadoria formalmente concedida ou pleiteada, de modo que o exame pela administração pública se dará com base nas circunstâncias presentes e leis vigentes quando do implemento das condições. Posteriores mudanças legislativas, doença, morte ou demissão são irrelevantes.
Pertinente é a doutrina de escol de CARLOS AYRES BRITO, in “Teoria da Constituição“:
‘Se um determinado funcionário alcança o tempo mínimo de 35 anos de contribuição previdenciária, ela ganha o direito à aposentadoria com proventos integrais, e esse direito, por fluir direta e exclusivamente de uma norma geral, se categoriza como adquirido. Contudo, se o funcionário formaliza o seu pedido de aposentação e a administração pública expede o respectivo ato, com seqüenciada aprovação pelo Tribunal de Contas, o direito subjetivo, que era do tipo adquirido, passa a se chamar ato jurídico perfeito’ (Forense, nota 9, 2003, p. 112/113) (o destaque não consta do original).
Tem-se, assim, que a formação do direito adquirido independe de qualquer requerimento pela parte interessada.
Trazendo este raciocínio à problematização propulsora deste artigo, resulta inconteste que o servidor público que tenha reunido as condições para o jubilamento, mas não o tenha requerido, ou, tendo o requerido, não obteve decisão, não poderá ter seu direito adquirido à aposentadoria afetado por eventual ulterior exoneração decorrente da perda do cargo público determinada como efeito extrapenal de sentença condenatória, porquanto sequer era necessário qualquer requerimento de aposentadoria, haja vista que, àquela altura, tratava-se de um direito consolidado, um direito adquirido.
Nesse sentido, pacificou o STF: “Aposentadoria: a apresentação do requerimento não é pressuposto de aquisição do direito à aposentadoria, que se dá com a reunião dos seus requisitos substanciais“9 (sem destaques no original)
Em outro julgamento emblemático sobre o tema do direito adquirido à aposentadoria, o TRIBUNAL PLENO do STF reiterou que a formação do direito adquirido à inatividade remunerada independe de qualquer requerimento:
“APOSENTADORIA. DIREITO ADQUIRIDO. Se, na vigência da lei anterior, o funcionário preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria não o faz perder o seu direito, que já havia adquirido.”10(destacamos)
O requerimento de aposentadoria é apenas um veículo vocacionado à transformação do direito adquirido à aposentação em nova categoria jurídica, a saber, a de ato jurídico perfeito, outro grau de proteção de direitos fundamentais à luz da segurança jurídica.
Inobstante, tanto o ato jurídico perfeito (o deferimento da aposentadoria pelo ente competente) quanto o direito adquirido (preenchimento dos requisitos necessários à aposentação) gozam da mesma proteção constitucional.
Assim, não é fundamento idôneo para denegação de pedido de aposentação aquele consubstanciado em intempestividade do pleito de passagem para a inatividade, por ter sido realizado quando não mais existente o vínculo do servidor com a administração pública, ou seja, por ter sido formalizado o requerimento após a exoneração decretada como efeito extrapenal de sentença criminal condenatória. E não é fundamento idôneo pela simples razão de que tal tese (necessidade de pedido de aposentadoria enquanto existente vínculo do servidor com a administração pública) coloca-se em flagrante rota de colisão com o núcleo essencial decorrente do direito adquirido à aposentadoria, cuja formação (do direito adquirido) não carece de qualquer requerimento e ocorre ope legis.
A afirmação de que se trata de direito adquirido não pode induzir à falsa conclusão de que então seria um “super direito” ou um direito absoluto, imodificável. Nem é isto que se está a afirmar, pois é pacífico não existir direito adquirido a regime jurídico previdenciário11, bem como que a posterior cobrança de contribuição previdenciária do servidor inativo (EC 41/03) não afeta o núcleo essencial do direito adquirido à aposentadoria12. Os efeitos das modificações posteriores podem alcançar o direito à aposentadoria conforme e dependendo do seu status jurídico: se em formação (direito em expectativa), é atingido; em alguns casos, mesmo devidamente constituído, será impactado por novas leis no que toca à percepção dos efeitos do jubilamento, como a cobrança dos inativos; porém, muito diverso é o efeito de supressão total do direito à aposentação por suposta cassação automática decorrente da perda do cargo público decretada em sentença penal.
Neste último caso, presente a supressão do núcleo essencial do direito adquirido ao jubilamento, a violação à constituição é certa, grave e inadmissível.
Isso porque, quando o servidor passa ao jubilamento, os proventos percebidos desvinculam-se do exercício do cargo ou função, e a verba alimentar que receberá não será decorrência de uma contraprestação, mas, sim, proventos, calculados pelo tempo de contribuição e adequado às peculiaridades do posto que ocupava enquanto em atividade.
Por efeito direito da Constituição Federal, no que tange à previdência social do servidor público (art. 40), editou-se a lei 9.717/98 (aplicável a todos os níveis da administração pública), impondo ao servidor, tanto civil como militar – ativo, inativo e aos pensionistas -, a contribuição para fins previdenciários, de sorte a ser de rigor observar que, para aquele que se aposenta (inativo), estará garantido o direito aos respectivos proventos, fruto de sua contribuição, conforme exigido pelo ordenamento jurídico.
De tal modo, como a aposentadoria do civil é direito já incorporado à esfera patrimonial daquele que contribuiu durante o período de atividade estabelecido em lei, uma vez cumpridos os requisitos, aquele estará acobertado pelo direito adquirido inserto no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna de 1988, cuja importância o elevou ao status de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, CF/88).
Nessa ótica, o direito à passagem para inatividade remunerada já havia irreversivelmente ingressado na órbita do patrimônio do servidor, de sorte a traduzir-se em direito adquirido, e, como consequência da força normativa da constituição (Konrad Hesse), tal direito público subjetivo do agente público tornou-se imune a atos estatais tendentes a suprimi-lo. Nem mesmo o efeito extrapenal proclamado em sentença penal condenatória tem o condão de alcançar a aposentadoria.
Logo, a passagem para a inatividade remunerada, uma vez preenchidos os requisitos legais, constitui direito adquirido intangível sequer por sentença penal que decrete a perda do cargo como efeito extrapenal, ainda que o requerimento de aposentação seja posterior ao implemento da exoneração assim motivada.
IV – A inviabilidade de ampliação do raio de alcance do art. 92, I, do Código Penal(disposição “numerus clausus”) por juiz penal, juiz cível ou pela administração pública, para atingir a aposentadoria
Em que pese a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo ser efeito de natureza administrativa e política13 e não estar vinculado necessariamente à prática de delito contra a administração pública, a decretação de tal efeito em sentença penal não induz automática cassação da aposentadoria.
É que, como visto, o vínculo jurídico funcional com o ente público faz nascer a relação jurídico-previdenciária. Mas o fim daquele vínculo não fulmina este último, pois operam seus efeitos em órbitas distintas.
Não obstante, a inconstitucionalidade e ilegalidade do ato de se emprestar efeitos de cassação da aposentadoria ao decreto penal de perda do cargo público se dão também na ótica da violação ao princípio da legalidade estrita, que condiciona a positivação de crimes e penas à prévia existência de lei (nullum crimen nulla poena sine lege).
Portanto, o alcance e o limite do art. 92, I, do CP, se sujeita às regras comezinhas de hermenêutica, sobretudo a que veda interpretação ampliativa quando presente disposição “numerus clausus“, de modo a impedir venha uma decisão administrativa ou judicial em processo civil a negar a aposentação mediante a ampliação dos efeitos do decreto de perda do cargo aqui tratado para além dos limites jurídicos do art. 92, I, do CP1. Igualmente, inviável que ao decretar a perda do cargo público, se arvore a sentença penal em avançar sobre a órbita da aposentadoria. Isto é, não poderá a sentença penal determinar a supressão da aposentadoria, que, como visto, não se adequa ao conceito jurídico de cargo, função pública ou exercício de mandato eletivo. Ou seja, a cassação da aposentadoria está excluída dos possíveis efeitos de eventual decretação da perda do cargo público com base no citado dispositivo legal, uma vez que não se admite analogia in malan partem14.
Portanto, o Juiz oficiante em vara criminal, ao aplicar o art. 92, I, do CP, jamais poderá deliberar sobre o direito constitucional-previdenciário à aposentadoria, a não ser para tornar explícito que a norma que justifica a perda do cargo público não alcança a inatividade remunerada.
Do mesmo modo, a administração pública e o juiz competente para questões previdenciárias não poderão invocar a prévia existência de aplicação do art. 92, I, do CP em sentença penal, como fundamento de per se suficiente para indeferimento de pleito de aposentadoria, sob pena de igual extrapolação dos estreitos lindes dos conceitos elencados no precitado art. 92, I, do CP. É dizer, uma vez deflagrado pedido administrativo ou judicial de aposentação, descabe justificar a negativa do pleito sob o argumento da prévia aplicação do art. 92, I, do CP, por se estar ampliando seu campo de atuação em prejuízo do condenado.
V – Conclusão
O efeito extrapenal da perda do cargo público decretada em sentença criminal (art. 92, I, do CP) não tem eficácia sobre a aposentadoria.
Isso implica dizer que o juiz oficiante em Vara Criminal jamais poderá determinar a cassação da aposentadoria, sob pena de violação à estrita legalidade e de afronta à vedação de interpretação analógica em prejuízo do acusado.
Igualmente, nem mesmo um juiz oficiante em Vara Cível/Previdenciária e tampouco o administrador público poderá negar pedido de aposentadoria ao argumento de prévia aplicação do art. 92, I, do CP em processo-criminal, quando presente a situação de que antes da efetivação da exoneração (a demissão propriamente dita) o segurado/réu já preenchia todos os requisitos para passar para a inatividade remunerada, porquanto se está diante de direito adquirido à aposentação, o qual independe de qualquer pedido administrativo ou judicial para completar seu ciclo de formação.
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1 Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.
525;
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1 SANTOS. Juarez Cirino dos. Direito Penal, Parte Geral. 4. ed., Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 5.
2 A despeito de importantes vozes afirmarem abranger qualquer cargo (vide MASSON. Cleber. Código Penal Comentado. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 445), a celeuma a respeito do cargo que é atingido pelo efeito da decretação da perda parece ter sido pacificada no sentido de que se limita ao cargo ocupado ao tempo do crime, não podendo alcançar outros, salvo na hipótese em que o magistrado, motivadamente, entender que o novo cargo ou função guarda correlação com as atribuições anteriores (REsp 1.452.935-PE, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, por unanimidade, julgado em 14/3/17, DJe 17/3/17)
3 Existem 3 correntes: (a) 1ª corrente: ainda que o deputado federal ou o senador seja condenado criminalmente, com sentença judicial transitada em julgado, a perda do mandato dependerá de decisão por maioria absoluta da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, nos termos do art. 55, §2º, da CF/88. Esta corrente prevaleceu no STF no julgamento do Senador Ivo Cassol (AP 565/RO, rel. min. Cármen Lúcia, julgado em 7 e 8/8/13 – Info 714). (b) 2ª corrente: desnecessária votação pela respectiva Casa (não se aplica o art. 55, § 2º da CF/88), que se restringiria a um juízo político dos congressistas, de modo que se o STF determinou a perda do cargo, a condenação transita em julgado operaria ex lege e com o condão de acarretar a perda do mandato. Este entendimento foi adotado no julgamento do “Mensalão” (AP 470/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, julgado em 10 e 13/12/12 – Info 692); (c) 3ª corrente: dependeria da quantidade de pena e do regime impostos, porquanto, se superior a 120 dias em regime fechado, a perda do mandato seria consectário lógico do não atendimento ao número mínimo de sessões (1/3 = 120 dias), como previsto no art. 55, III, da CF/88. Em tal hipótese, a Mesa da Casa respectiva não tem o poder de decidir se o parlamentar irá perder ou não o mandato. Este entendimento foi firmado no STF, 1ª Turma, AP 694/MT, rel. min. Rosa Weber, julgado em 2/5/17 (Info 863).
4 Adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, internalizado no Brasil Decreto 592, de 6 de julho de 1992.
5 O texto do art. 3º da lei 8.112/90 preconiza: “Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.”
6 Fonte: Clique aqui. Acesso em 30.4.18. Outras fontes citam 44 deputados (clique aqui), e, ainda, o Presidente da República, 12 senadores e 37 deputados federais (clique aqui); sobre governadores, consta: Clique aqui. Veja-se ainda: Clique aqui.
7 É o que positiva o parágrafo único do art. 92 do CP quando assenta que “Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença“.
8 STJ, AgRg no REsp 1674070/AC, rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 19/10/17, DJe 27/10/17.
9 RE 451.836/MG, rel. min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 13.10.06.
10 STF, RE c/ embargos 72509, Tribunal Pleno.
11 É a jurisprudência do STF: “3. É o momento em que preenchidos os requisitos para aposentadoria que define a legislação que será aplicada ao caso, não cabendo falar-se em direito adquirido a regime jurídico anterior ao tempo em que preenchidos tais requisitos. 4. Outrossim, é cediço na Corte que não há direito adquirido a regime jurídico, aplicando-se à aposentadoria a norma vigente à época do preenchimento dos requisitos para sua concessão. 5. Mandado de segurança denegado.” (MS 26646, Relator(a): min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 12/5/15, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe- 102 DIVULG 29-5-15 PUBLIC 1-6-15).
12 Alvo da ADIn 2138, a EC 41/03 (instituidora da contribuição dos inativos) foi reputada constitucional: “No ordenamento jurídico vigente, não há norma, expressa nem sistemática, que atribua à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público o efeito de lhe gerar direito subjetivo como poder de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos e pensões à incidência de lei tributária que, anterior ou ulterior, os submeta à incidência de contribuição previdencial. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento.” (ADI 3128, relator(a): min. ELLEN GRACIE, relator(a) p/ acórdão: min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/8/04, DJ 18-2-05 PP-00004 EMENT VOL-02180-03 PP-00450 RDDT n. 135, 2006, p. 216-218)
13 PRADO. Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência, conexões lógicas com os vários ramos do direito. 11. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 327.
14 STJ: “1. O art. 92 do Código Penal apresenta hipóteses estreitas de penalidade, entre as quais não se encontra a perda da aposentadoria e, por se tratar de norma penal punitiva, não admite analogia in malam partem. 2. Precedentes da Quinta e da Sexta Turma. 3. Agravo regimental improvido.” (AgInt no REsp 1529620/DF, rel. ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/9/16, DJe 6/10/16)