No último dia 5 de outubro um motorista cadastrado na empresa Uber foi preso em flagrante na cidade de Florianópolis ao desembarcar um passageiro que havia solicitado o serviço pelo aplicativo, tendo sido autuado e conduzido a Delegacia de Polícia, onde permaneceu detido sob a acusação de ter praticado o delito insculpido no art. 265 do Código Penal[1].
O polêmico serviço de transporte privado, atualmente utilizado em diversas cidades do mundo e do Brasil, começou a operar no município no dia 30 de setembro, rendendo desde sua estréia a apreensão de diversos veículos e a aplicação de pesadas multas pela Guarda Municipal, até ser noticiado que uma atitude mais drástica havia sido utilizada no afã de coibir a ação do aplicativo: a prisão de um de seus motoristas.
Comunicado o flagrante, a medida constritiva foi relaxada pelo magistrado plantonista, que entendeu não ter ocorrido crime, mas, quando muito, uma mera infração administrativa, alertando no ato decisório que futuras prisões de mesma natureza poderiam caracterizar eventual abuso de autoridade passível de gerar a responsabilização pessoal dos agentes e do Estado.
Encaminhado o processo ao Ministério Público, o promotor opinou pelo arquivamento e a imediata devolução do carro e do celular do motorista conduzido, ambos apreendidos na operação policial, salientando ter havido abuso por parte das autoridades que realizaram a prisão.
Sem adentrar no mérito da questão referente a legalidade do Uber, cujo assunto, por si só, tem provocado caloroso debate em diversos áreas especializadas do conhecimento jurídico, é preciso que este lamentável episódio seja refletido sob a ótica criminal.
A lei penal, não é novidade, é essencialmente seletiva e possui forte matriz patrimonialista, especialmente no sistema repressivo brasileiro, conferindo tratamento jurídico mais severo aos delitos que atentam contra bens e posses de determinados sujeitos, deixando clara, neste aspecto, sua função mantenedora do status quo.
Este fenômeno pode ser facilmente constatado ao se comparar as sanções atribuídas a determinados delitos no Brasil. A pena do furto (que tutela a propriedade), por exemplo, é de 2 a 8 anos de reclusão, sendo significativamente superior a da lesão corporal grave (que tutela a integridade física), a qual é atribuída pena de1 a 5 anos de reclusão, sendo muito mais reprovável, de acordo com o diploma repressivo, subtrair para si algo de alguém do que cegar-lhe permanentemente um dos olhos.
Nesse passo, o Estado exercendo este questionável papel não declarado, tem utilizado o poder a ele delegado[2] para, de maneira ilegítima, manter o monopólio econômico de seus escolhidos sobre determinadas áreas econômicas, abrindo brecha para que seus agentes ajam de maneira abusiva, pouco civilizada e anti-democrática.
Amostra disso é o episódio ocorrido em 18 de setembro de 2014, em que um policial ceifou a vida de um ambulante durante uma blitz realizada para coibir o comércio irregular na Lapa, em São Paulo[3], tendo a desastrosa operação sido gravada por um expectador e divulgada nas redes sociais, causando bastante revolta e comoção social.
Em relação ao Uber, o movimento contrário à operacionalização do aplicativo decorre, essencialmente, da reserva legal criada e mantida pelo Estado em favor de uma determinada classe (taxistas) para, mediante autorização do ente público (concessão de licença), explorar uma atividade econômica que poderia, em tese, ser executada por qualquer pessoa habilitada para condução de veículos.
Esta regulação do mercado, por mais bem intencionada que seja, tende a causar diversos problemas por misturar os interesses públicos e privados da Administração e de seus sócios nestas típicas relações comerciais, mormente pela expressiva quantia que é movimentada por força destas proveitosas parcerias.
É por isso que a denominada “teoria da captura”, inaugurada por George Stigler[4], prescreve que as entidades regulatórias criadas para preservar a coletividade e o equilíbrio das relações empresariais fatalmente inclinam-se a ser desvirtuadas política ou economicamente para favorecer os interesses de determinados grupos que dominam um segmento comercial.
No caso dos taxistas, as agências reguladoras do serviço de transporte são as prefeituras, que, para manter os privilégios do setor, limitam a concorrência e acabam distorcendo significativamente a dinâmica do mercado.
A título exemplificativo, as licenças de táxi para o aeroporto de Guarulhos custam, segundo informações extra-oficiais[5], nada menos que a “bagatela” de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) no “mercado paralelo”, situação que é bastante comum em diversas localidades do Brasil, como na própria cidade de Florianópolis, que em 2013 foi alvo de investigação sobre a venda ilegal de permissões na denominada “CPI dos Taxis”[6].
Por outro lado, em um arranjo de livre concorrência – diferente do que ocorre atualmente – os participantes devem sempre estar preocupados com a qualidade e o barateamento do produto ofertado, vez que a empresa é dependente exclusivamente das compras voluntárias realizadas pelos seus consumidores, sendo a concorrência, deste modo, a grande chave para o melhoramento dos serviços[7].
O Uber limita-se a facilitar o encontro entre os demandantes e ofertantes do serviço de transporte privado, não ilidindo, em nenhuma hipótese, a possibilidade de o consumidor final (passageiro) optar pela utilização do tradicional serviço de taxi, que pode melhorar e evoluir ou torna-se obsoleto e ser naturalmente excluído do mercado.
A grande adesão ao aplicativo, nesse contexto, deveria servir de alerta para a ineficiência do atual modelo de transporte adotado no país, vez que a população aparentemente está mais satisfeita com a novidade apresentada do que com o antigo serviço altamente regulado dos táxis, que, não necessariamente por este motivo, significa certeza de desejada qualidade.
Diante deste cenário, o que se percebe com a recente prisão do motorista do Uber é a utilização de um expediente vil, abusivo e de índole bastante duvidosa, que não pode ser tolerado numa sociedade que pretende ser democrática, mormente quando o ato combatido não apresenta nenhum risco concreto e é socialmente aceito e apoiado.
Em resumo, o ente estatal, por meio de fortes regulamentações, restringe a concorrência no setor de transporte, proporcionando um produto pouco satisfatório à população e, ao se deparar com uma opção diferente fornecida para esta carente demanda, tenta criminalizá-la para manter, de forma autoritária, o monopólio empresarial próprio e de seus parceiros comerciais.
Trata-se de grave degeneração o Estado, a quem foi delegada a função de dirimir conflitos sociais, utilizar-se do poder punitivo para dar vazão a esta promíscua interação entre o poder econômico e o direito penal, tudo para manter o privilégio sobre a exploração de uma atividade que, por mera liberalidade e conveniência, decidiu regulamentar, nem mesmo a pretexto de resguardar a famigerada segurança “pública”[8].
É preciso que o ente estatal, ao menos no campo criminológico, não esqueça de pautar sua atividade sempre em atenção aos primados da fragmentaridade e da intervenção mínima, atuando somente para reprimir condutas que causem lesões significativas a bens juridicamente tutelados, o que não é o caso de quem opera, ainda que sem autorização administrava, um serviço de transporte privado, sob pena de flertar-se com o autoritarismo e infringir, em mais de um aspecto, um bem fundamental em toda a sociedade civilizada, qual seja, a liberdade.
Notas e Referências:
[1] Art. 265, Código Penal – Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.
[2] Segundo Aury Lopes Junior (p. 2): “O Estado, como ente jurídico e político, avoca para si o direito (e o dever) de proteger a comunidade e também o próprio réu, como meio de cumprir sua função de procurar o bem comum, que se veria afetado pela transgressão da ordem jurídico-penal, por causa de uma conduta delitiva.”
[3] Notícia disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/18/politica/1411075337_655762.html
[4] STIGLER, George. The Theory of Economic Regulation. Disponível em <http://www.ppge.ufrgs.br/giacomo/arquivos/regulacao2/stigler-1971.pdf>. Acesso em 20 out. 2016.
[5] Informação do Portal Brasil, Economia e Governo, disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2015/07/08/quem-ganha-e-quem-perde-com-a-liberacao-dos-taxis/
[6] Para mais informações: http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/relatorio-final-da-cpi-dos-taxis-aponta-16-pessoal-envolvidas-na-ilegalidades
[7] Segundo Israel Kirzner (p. 15): “[…] no decurso do processo de mercado, os participantes estão continuamente testando os seus competidores. Cada um se adianta aos outros, oferecendo oportunidades um pouco mais atraentes que as deles. Seus competidores, por sua vez, ao saberem com o que eles estão competindo, são forçados a adoçar ainda mais as oportunidades que põem à disposição do mercado; e assim por diante. Nessa luta para se manter à frente dos seus competidores (mas ao mesmo tempo evitar criar oportunidades mais atraentes que o necessário), os participantes do mercado são forçados pelo processo competitivo de mercado a gravitar cada vez mais perto dos limites da sua capacidade de participar lucrativamente do mercado.”
[8]Para Aury Lopes Junior (p. 73):”Argumento recorrente em matéria penal é o de que os direitos individuais devem ceder (e, portanto, serem sacrificados) frente a “supremacia” do interesse público. É uma manipulação que faz um maniqueísmo grosseiro (senão interesseiro) para legitimar e pretender justificar o abuso de poder.”
CLICRBS. Juiz manda soltar motorista do Uber que foi preso em flagrante em Florianópolis. Disponível em: http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2016/10/juiz-manda-soltar-motorista-do-uber-que-foi-preso-em-flagrante-em-florianopolis-7681065.html. Acesso em: 31 out. 2016
CLICRBS. Promotor pede arquivamento do caso que gerou prisão de motorista da Uber: É uma vergonha.Disponível em: http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2016/10/promotor-pede-arquivamento-do-caso-que-gerou-prisao-de-motorista-da-uber-e-uma-vergonha-7703142.html. Acesso em: 31 out. 2016
BRASIL, ECONOMIA E GOVERNO. Quem ganha e quem perde com a liberação dos táxis? Disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2015/07/08/quem-ganha-e-quem-perde-com-a-liberacao-dos-taxis/. Acesso em: 31 out. 2016
EL PAIS. Policial mata ambulante na Lapa, zona oeste de São Paulo. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/18/politica/1411075337_655762.html. Acesso em: 31 out. 2016
G1.Uber anuncia início das operações em Florianópolis a partir de sexta (30). Disponível em: http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2016/09/uber-anuncia-inicio-das-operacoes-em-florianopolis-partir-de-sexta-30.html. Acesso em: 31 out. 2016
G1.1º dia da Uber em Florianópolis tem fiscalização e carros apreendidos. Disponível em: http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2016/09/1-dia-do-uber-em-florianopolis-tem-fiscalizacao-e-carros-apreendidos.html. Acesso em: 31 out. 2016
KIRZNER, Israel. Competividade e Atividade Empresarial. Disponível em: http://www.libertarianismo.org/livros/ceaeik.pdf. Acesso em: 31 out. 2016.
LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao Processo Penal (Fundamentos da instrumentalidade constitucional). Rio de Janeiro: Lumen Juris
NOTICIAS DO DIA. Relatório final da CPI dos Táxis aponta 16 pessoas envolvidas em ilegalidades. Disponível em: http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/relatorio-final-da-cpi-dos-taxis-aponta-16-pessoal-envolvidas-na-ilegalidades. Acesso em: 31 out. 2016
STIGLER, George. The Theory of Economic Regulation. Disponível em: <http://www.ppge.ufrgs.br/giacomo/arquivos/regulacao2/stigler-1971.pdf>. Acesso em: 31 out. 2016.