Por Samantha de Andrade
Em 1º de abril de 2021 foi publicada a Lei nº 14.132/2021 que, com certo atraso, criminalizou de forma específica a conduta comumente conhecida como stalking e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o art. 147-A do Código Penal.
A tipificação específica dessa modalidade de conduta ocorreu, no Brasil, mais de 30 anos após a primeira incriminação, que se deu em 1990, no Código Penal da Califórnia, em seu art. 649.9, “a”, e já havia sido replicada por outros estados americanos e, também, por outros países, como Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, entre outros.
Antes da entrada em vigor da Lei nº 14.132/2021, as condutas que hoje são consideradas como crime de perseguição eram enquadradas no tipo previsto no art. 65 da Lei das Contravenções Penais, qual seja, de perturbação da tranquilidade ou, ainda, quando presente algum tipo de intimidação da vítima, no crime de ameaça; de constrangimento ilegal ou, ainda, em um dos crimes contra a honra.
Com a criação do tipo penal nominado de crime de perseguição, o legislador revogou expressamente o art. 65 da Lei de Contravenções Penais, o que acabou, no frigir dos ovos, por suprir um vácuo legislativo e, ao mesmo tempo, criar outro, já que a perturbação da tranquilidade sem habitualidade, sem reiteração, agora, se trata de fato atípico.
Em que pese a falha do legislador, que deveria ter mantido em vigor a previsão legal outrora utilizada quando ainda inexistente a tipificação legal específica da conduta, não se pode deixar de reconhecer que houve, nesses três anos de vigência da Lei nº 14.132/2021, grande avanço na penalização do que comumente se denominou de stalking ou cyberstalking.
As palavras em inglês são utilizadas com referência ao verbo stalk que, na prática da caça, corresponde à conduta de perseguir incessantemente. Por qualquer meio, ou seja, tratando-se de crime de forma livre, a prática de stalking ocorre quando o agente ofende a liberdade individual da vítima por intermédio da repetição sistemática de atos capazes de degradar sua integridade psicológica, perturbando sua paz existencial e impedindo, assim, o exercício da felicidade, que são direitos fundamentais intrínsecos à pessoa humana. Caracteriza-se pela ação de atormentar, assediar, atemorizar, aterrorizar, incomodar, importunar, molestar ou constranger o sujeito passivo (que pode ser homem ou mulher).
Na hipótese, muito comum atualmente, de o agente se valer de ferramentas digitais como meio de realizar essa perseguição reiterada ocorre o chamado cyberstalking.
No intuito de verificar qual a jurisprudência firmada pelo TJSC sobre o tema, procedeu-se a pesquisa junto ao site oficial[1] com base na expressão “crime de perseguição” consignada no inteiro teor da decisão, que apontou um total de 20 acórdãos, dos quais 19 era afeitos ao âmbito criminal e apenas 17 ocorreram após 01.04.2021.
Em dezembro de 2022, todas as cinco Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de Santa Catarina já haviam proferido pelo menos um julgamento sobre o novo tipo penal, havendo, atualmente, 10 decisões proferidas em Recursos de Apelação e 7 em sede de Habeas Corpus, totalizando, assim, 17 julgados até a presente data.
Desde o primeiro julgamento proferido, em julho de 2021, que assim o foi em sede de Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina[2], foi sedimentado o entendimento de que “a revogação do art. 65 da Lei de Contravenções Penais pela Lei n. 14.132/21 não enseja, necessariamente, a abolitis criminis, porquanto a conduta proscrita foi parcialmente deslocada, sem solução de continuidade, para a nova infração penal prevista no art. 147-A do Código Penal (continuidade normativo-típica)”.
Naquela oportunidade, apesar de reconhecer a continuidade típico-normativa, foi concedida a ordem para trancar a Ação Penal pois, “como o crime de perseguição (stalking), inserido pela Lei n. 14.132/21, exige reiteração do comportamento tipificado, qualificando-se como habitual, a prática de apenas uma conduta, antes prevista no revogado art. 65 da Lei de Contravenções Penais, não configura a nova infração penal e, se incapaz de subsumir-se a outro preceito incriminador, foi alcançada pela lei penal posterior mais branda, de imperativa aplicação retroativa (art. 2º do Código Penal), operando-se a abolitio criminis”, como consignado na própria ementa do julgado.
Menos de três meses depois, referida interpretação se repetiu, também, na primeira Apelação julgada no TJSC[3] após a criação do tipo penal próprio do art. 147-A do Código Penal, ratificando o posicionamento de que “em razão de ter restado mantida a proteção do mesmo bem jurídico configura-se, em parte, a continuidade-típico normativa. Entretanto, o novo delito acrescentou a exigência de que a perturbação ocorra de maneira reiterada – diferentemente da contravenção penal -, bem como a necessidade de representação da vítima (§ 3º)”.
Desde então, não houve, no decorrer desses três anos qualquer oscilação nessa interpretação, mantendo-se todas as cinco Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em harmonia no tocante à inserção do crime de perseguição previsto no art. 147-A do Código Penal Brasileiro, notadamente naquilo que tange às novas exigências para a sua caracterização (reiteração da conduta e representação da vítima) se comparado ao tipo previsto antes no art. 65 da Lei de Contravenções Penais, hoje já revogado, bem como à ocorrência de continuidade típico-normativa entre ambos, e não simples abolitio criminis. Essa é, portanto, a jurisprudência firmada no TJSC, totalmente harmônica nesses três anos após entrada em vigor da lei 14.132/2021.
Samantha de Andrade é associada da AACRIMESC e da Abracrim. Advogada criminalista e eleitoral, é pós-graduada em Direito Público Municipal, sócia-proprietária do escritório Andrade Advogados, vice-presidente da 42ª Subseção da OAB, de Balneário Piçarras (SC) e delegada da OABPrev/SC.
[1] Disponível em https://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#formulario_ancora
[2] TJSC, Habeas Corpus Criminal n. 5026660-68.2021.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Sidney Eloy Dalabrida, Quarta Câmara Criminal, j. 08-07-2021.
[3] TJSC, Apelação Criminal n. 5000974-06.2020.8.24.0034, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Getúlio Corrêa, Terceira Câmara Criminal, j. 05-10-2021.